Ainda é possível sonhar, Martin?
Falar de sonhos é algo central para quem acredita em dias melhores; o sonho normalmente tem marcas de utopia, uma realidade que nunca chega, mas que temos sede e fome de ver se materializar em nossas vidas. Algumas perguntas, entretanto, permeiam a minha mente, como jovem negro que vive em uma nação que foi escravista durante 388 anos e hoje assassina a juventude negra a cada 23 minutos: é possível sonhar enquanto se sofre dores inexprimíveis? Será que um povo que historicamente teve seu direito à dignidade roubado sistematicamente consegue ter sonhos de liberdade e esperança? Talvez o sonho, nesse caso, se torne uma fuga, uma maneira de não aceitar a realidade, e o mais poderoso: uma forma de reafirmar quem realmente somos, apesar de alguns se levantarem achando que são nossos senhores, donos das nossas vidas ou de quem somos. Sonhar é um instrumento possível para enfrentar a realidade: enquanto o racismo diz que não somos humanos, os sonhos que nascem do povo negro ecoam na história, dando ao mundo exemplos radicais de uma humanidade negra que insiste na construção de uma realidade de vida.
Martin Luther King talvez seja a voz mais conhecida quando pensamos em sonhar. Em seu profundo discurso conhecido como I Have a Dream (Eu tenho um sonho), o pastor batista, nas escadarias de Washington, na maior marcha da história do povo afro-americano estadunidense, começa afirmando: “o Negro ainda não é livre”. Antes de pensar em sonhar, King conta o motivo de precisarmos romper com o real. Quase como uma marcha, ele vai construindo a sua fala histórica em direção ao alvorecer, mas antes faz questão de falar de uma grande e longa noite que o povo negro estava passando, quando diz que “cem anos depois, a vida do Negro ainda é tristemente inválida pelas algemas da segregação e as cadeias de discriminação”. Pensando a realidade norte-americana dos anos 60 e conectando com o atual contexto do Brasil do século XXI, podemos afirmar que a vida do negro brasileiro ainda é tristemente exterminada pelos caveirões da morte, que a dor que King sentia e as forças que tentavam interditar o alvorecer negro de um mundo mais justo para os condenados da terra são as mesmas que estão há séculos no mundo ocidental.
“A América deu para o povo negro um cheque sem fundo, um cheque que voltou marcado com “fundos insuficientes”. Mas nós nos recusamos a acreditar que o banco da justiça é falível. (…) Assim, nós viemos trocar este cheque, um cheque que nos dará o direito de reclamar as riquezas de liberdade e a segurança da justiça.” (Martin Luther King, 1963)
Diante da longa noite que o povo negro ainda vivencia, enquanto leio o discurso de King, fico pensando, quase que em uma conversa direta com o próprio líder do movimento dos direitos civis: “será que ainda é possível sonhar, pastor? Eles continuam nos matando, nos roubando, nos separando. Nossas crianças são fuziladas, nossos homens são encarcerados, nossos jovens são assassinados e nossas mulheres morrem de doenças crônicas diante do abandono social e do desemprego. A terra continua sendo deles, o Congresso tem os mesmos donos de sempre e quem manda no nosso sistema de justiça tem cor. Martin, nós estamos em um beco sem saída, rendidos, desarmados, as leis realmente avançaram, os nossos direitos fundamentais até existem no papel, mas eles não param, parecem máquinas que precisam colocar esse sistema para funcionar, e o preço é o nosso sangue. Esse cheque sem fundo e esse saldo insuficiente permanecem como marca das Américas, não somente do Norte, mas se estende por todo o continente, como uma praga que não para de crescer”.
Este texto, assim como o discurso de King, é sobre sonhos, mas, com tanta dor e desesperança, quando estes nascem? Quando nós começamos a sonhar? Queria me arriscar dizendo que, segundo o pensamento de Luther King, os sonhos começam na recusa. Na mesma hora em que recusamos o que foi imposto para nós como verdade absoluta e acreditamos na liberdade e na justiça como valores que são nossos, também temos direito de acessar. Temos o direito de ser integralmente livres e plenamente saciados com a justiça, e por isso começamos a exigir mudança! O sonho negro, neste caso, começa na teimosia, na insistência de sabermos quem de fato somos, de não nos deixarmos definir por aqueles que tentam fabricar pesadelos com a nossa realidade, que tentam eternizar a afirmação de que “o Negro ainda não é livre”. Por isso o velho hino spiritual Oh Freedom, cantado desde os tempos de escravidão pelas igrejas negras, vai dizer:
“Oh, liberdade, oh, liberdade, oh, liberdade sobre mim. E antes de me tornar um escravo, serei enterrado em meu túmulo, e irei para casa, para meu Senhor, e serei livre.”
O grito de liberdade que ecoava no sonho de Luther King não nasce de um incômodo simples e de algo momentâneo. Esse sonho é coletivo e navega por gerações. Os negros sempre escolheram cantar sobre liberdade, preferiram o céu às algemas, queriam ir para casa, voltar para o seu lar; o sonho era o cessar das dores, era a plena liberdade ou qualquer realidade em que a prisão, a violência ou a supremacia não tivesse lugar. Para sonhar, é preciso gritar, bradar alto, marchar e, no caso do contexto negro, encarar a morte face a face e falar. Como disse King, “Nós nos recusamos”. Os sonhos surgem da recusa das injustiças, da luta contra os pesadelos, da consciência de quem somos realmente. Sonhar é um exercício que começa dentro de nós, conhecendo quem somos, de onde viemos, quem lutou por nossas vidas, e Luther King sabia muito bem quem ele era. Por isso, o sonho dele se parece muito com o nosso, por isso a utopia que King expressava naquele púlpito, diante de mais de duzentas mil pessoas, ainda se conecta com a realidade das pessoas negras afrodescendentes do mundo inteiro.
“Agora é o tempo para subir do vale das trevas da segregação ao caminho iluminado pelo sol da justiça racial. Agora é o tempo para erguer nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a pedra sólida da fraternidade. Agora é o tempo para fazer da justiça uma realidade para todos os filhos de Deus. Seria fatal para a nação negligenciar a urgência desse momento. Este verão sufocante do legítimo descontentamento dos Negros não passará até termos um renovador outono de liberdade e igualdade. Este ano de 1963 não é um fim, mas um começo.” (Martin Luther King, 1963)
A urgência manifestada no discurso I Have a Dream atravessa o povo negro na sua mais íntima existência, pois o racismo faz os nossos sonhos serem urgentes. Afinal, viver, comer e ter uma casa, um emprego e condições iguais dentro do mercado de trabalho, as crianças negras serem protegidas e tratadas como crianças, ter educação e saúde de qualidade e ser considerado gente não deveria ser um sonho. Por esse motivo, a fome tem pressa, os que estão sob a mira do fuzil da polícia não podem mais esperar. O sonho que King nos apresenta tem o seu próprio tempo e sempre será o “agora”, só deixará de ser urgente quando a injustiça racial não for mais uma realidade. Afinal, como ele diz nesse discurso, “nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial (…) e nós não estaremos satisfeitos até que a justiça e a retidão rolem abaixo como águas de uma poderosa correnteza”. O começo desse sonho só é possível com o fim do racismo, por isso o sonho de King e das pessoas negras, na verdade, não é apocalíptico, não é sobre o fim dos tempos, mas sobre o início de uma nova realidade. O povo negro não sonha com um mundo melhor, ele sonha com um novo mundo, com novas maneiras de olhar e afirmar a humanidade em toda a sua diversidade. Diante de uma realidade construída e fundamentada no racismo, o discurso de King dá início a uma peregrinação, quase um chamado nos convocando para caminhar para uma nova realidade.
”Eu tenho um sonho de que minhas quatro pequenas crianças vão um dia viver em uma nação onde elas não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo de seu caráter. Eu tenho um sonho hoje! “(…)” Nesse justo dia, no Alabama, meninos negros e meninas negras poderão unir as mãos com meninos brancos e meninas brancas como irmãs e irmãos.” (Martin Luther King, 1963)
É preciso continuar dizendo: nós temos um sonho. O sonho de King era a derrubada do racismo, dos que tentavam definir o povo negro, dizer o seu destino, onde e como poderiam andar, comer e sentar, quais lugares poderiam ocupar ou nos quais poderiam viver. É bom dizer aos brancos que leem esse discurso que o sonho de King não era retirar a importância de quem nós somos ou o orgulho negro em prol de uma paz neutra e uma falsa equidade, mas ele sonhava que, sendo nós orgulhosamente negros em um mundo dominado pelo racismo branco, nossos direitos como seres humanos fossem garantidos. Assim, as leis segregacionistas e os muros que nos separam até hoje iriam cair por terra.