Infância, terra dos sonhos
(É manhã cedinho, será preciso cavoucar na terra de dentro.
Como responder ao convite para escrever sobre sonhos e infâncias? Nos atropelos do hoje, abre-se tempo e espaço para permanecer. E, como a vida tem me acariciado com pedidos assim, escolho aceitar.
É preciso envolver-se de si, respirar para a voz desaguar no papel. Banho quente, leite quentinho feito no escuro, somente com a chama do fogo aceso na cozinha. Foi escutando a fervura, com o calor subindo no rosto, que os sinais sutis vieram. O formigamento no peito. O leite já está fervilhando, o bebê pode despertar. Um movimento involuntário, sensível, que deságua no agora. A escrita é processo, e, quando há fome em dizer, tem momentos que chega até a vazar. O que deseja ser papel é revelador do corpo, como também são os sonhos. Seria o sutil nos atravessando?
Ligo o computador. O corpo emudece, soam-se alarmes.)
Durante meu tempo de infância, tinha certa repulsa às escritas. Eram de fora para fora, descoladas de mim, autoritárias, pasteurizadas por perguntas e respostas que valiam nota. Em suas sentenças (quase de morte) de certo e errado, perdiam significâncias, esvaziavam-se de seus sopros, de seus caminhos de vir a ser, dessensibilizando meu corpo de fala.
Acordar a escrita leva tempo. E é no amanhecer do dia, no despertar que ela se tece. Silencio e escuto.
Chego na sala de aula com uma caixinha de fósforo miudinha nas mãos. Num movimento preciso, balanço de um lado para o outro para que as crianças, ao escutar o tilintar, aos pouquinhos e, no seu tempo, se acheguem e aterrem em si.
Mas, em tempos em que a exaustão é o destino, somos pegos de surpresa pelas alças dos sovacos, colocados ao chão com pernas cruzadas. A professora solicita: “Começou a aula, é hora de sentar”. “Eu vou dizer onde cada um vai ficar”. “Lucas aqui, Tomás do outro lado. Vocês não conseguem sentar perto”.
Baque. Atropelamento. Intromissão. Sobra pressa quando educar deixa de ser uma questão de sensibilidade.
Essa cena é um sintoma da aridez, uma mostra do adoecimento que tomou as organizações sociais, que insistem em dizer que não há outra forma de viver o hoje.
Michelle Prazeres nos relembra: “As regras da vida nas plataformas se espraiaram para toda a nossa existência”. O excesso de estímulos, ofertas, tarefas, entretenimento que trazem não é preenchimento, é turvamento. O cuidado com as crianças foi tomado pelos ideais de eficiência, excelência de atendimento, excesso de prontidão. O “tão pronto a ajudar”, muitas vezes, nos embotam. Sobra controle. Sobra artificialidade. A contenção, a regulação de fora pra dentro nubla a expressão das infâncias, o vital. Será que tudo isso não tem distanciado as crianças de seus sonhos?
Como se sonha com pressa? Como se cria na era da distração? Como se sente quando todo sentir é perigoso?
Perde-se o olhar para o instante, para o inusitado. Anestesiam-se os movimentos pueris, os sentidos. O olho no olho que comunica se dissipa.
A expressão “não há tempo a perder” já nos doutrinou. Encaixotaram o tempo das crianças na gavetinha das funcionalidades, da produtividade máxima.
O pequeno fragmento de instante em que todo corpo se volta para onde o coração aponta se esvai. O que será que continha aquela pequena caixinha? Será que algum olhar encarteirado ainda procura pelo tilintar?
A minha memória deixa a sala de aula, caminha pela praia, uma cena me aventa. Pouso. Vejo uma criança mexendo nas pedras e em um buraco cavado ali no chão, ao lado de um canteiro verde. Segundo Walter Benjamin, “onde as crianças brincam, existe um tesouro enterrado”.
Ao tirar com as mãos um pouco de terra e colocar uma pedra, em um movimento de pôr, tirar, se misturar, chega seu pai e lhe diz:. “Filho, aí não pode, você vai se machucar”. Escuto seus gritos de quem foi arrancado de seu chão pelas alças do sovaco, arrancado de seu existir. Ouço o choro distante acender meus ouvidos, ecoando um pedaço da minha menina. “Ali certamente estava o mundo inteirinho, as sutilezas e as preciosidades do agora.”
O brincar é que fia o tempo presente das crianças, nessa mistura do pensar sentindo e do sentir pensando. A criança, ao cavar, encontra e é encontrada pelo brincar miúdo, um fazer que dialoga com o inesperado e o subversivo. Alargam-se os tempos, abrem-se buracos, espaços de imensidão para os estados de infância.
Enquanto acontece, a brincadeira se faz, e certamente a natureza é o maior disparador dos brincantes. Permanecer ali é transformar, ir além é desver, transver, romper com as próprias mãos os ciclos de mesmice, explorar a nós mesmos. Pausa-se o usufruir, comunga-se.
É a comunhão das naturezas: um pouquinho de mim, um tantinho de nós, uma conversa com o mundo. Esse brincar que comunga permanece no corpo mesmo quando já vai longe a infância. Sonhamos.
A natureza da infância nos leva a sentir, a conceber outros modos de viver. Estejamos atentos. E é apenas através de atos criativos que a vida se sustenta, frutifica, ganha sentidos. São as crianças que avivam nossos continentes do pensamento, da linguagem, do sensível, não como um fim, mas como experimentação. O eterno começo de tudo.
E, acordados, encontramos a folha no meio-fio sendo levada pela água corrediça da chuva, uma nuvem de vaga-lume no enlace do agora com o infindável. Alcançamos enfim a dimensão poética do cotidiano.
Já dizia Mia Couto: sonho é uma porta que dá acesso à poesia. No enredamento dos afetos, das importâncias, dos silêncio é que o sonho vai e vem, balança.
A entrega, o corpo como confluente, o vagar sem propósito — a criança se constitui desses movimentos. O à toa, a troco de nada, os buracos encontrados na terra precisam ser redescobertos, revelados, experimentados. É o tilintar que desperta o corpo atravessado pelas experiências que adentramos no imaginário, no simbólico, que alcançamos uma consistência própria. Pegando emprestado de Mario Quintana: sonhar é acordar-se para dentro.
Criançar, brincar e sonhar são três palavras de uma organicidade só, e é preciso enraizar-se nelas.
(Me preparo para enviar o texto, já é hora de lavar a caneca. Te devolvo agora o convite: como temos cuidado dos chãos das infâncias? Cabe o sonhar? E quão fértil está a sua terra dos sonhos? Afinal, são por eles que se chega às nascentes.)