
E se aprendermos a desistir?
Você já se emocionou com essa cena: diante das maiores adversidades, que variam entre vilões superpoderosos que querem dominar o mundo e questões familiares/financeiras/societárias, os protagonistas não desistem de sua missão. Se a partida está cinco a zero faltando poucos minutos para o apito final, ainda há chance de buscar o empate e até a vitória; se a arapuca parece insolucionável e a morte iminente soa como inevitável, uma fagulha de energia é tirada de alguma fonte inesgotável de força para buscar a sobrevivência. A narrativa é batida. Mas que força de vontade é essa? O que é que nos emociona tanto nessas cenas? A resposta é simples: o que nos toca nelas é a desconsideração total e completa que esses personagens demonstram diante da possibilidade de desistir. Dentre as poucas alternativas que sobram em situações adversas, desistir simplesmente não é uma delas. Isso nos emociona. Desistir, de acordo com o que nos é ensinado explícita e implicitamente, é um ato indigno; não desistir, por sua vez, é o que há de mais louvável. Heróis não desistem, se não não seriam heróicos. Bons exemplos, os tais role models, não desistem, se não não seriam exemplares.
“Desistir é um ato indigno”
E o que isso quer dizer sobre a visão padronizada do que é a desistência? Ela invariavelmente é sinônimo de algo ruim, do fracasso retumbante. É o não-terminar algo positivo, é aquilo que as pessoas fazem quando não estão mais buscando o que as fariam felizes.
Mas, afinal, será que desistir é mesmo tão ruim?
No livro Sobre Desistir, publicado em versão brasileira pela editora Ubu, Adam Phillips escreve um sedutor manifesto a favor da complexidade da natureza humana e contra o binarismo pobre entre triunfo e fiasco, uma reflexão que se distancia do que nos é dado como verdade absoluta ao explorar as várias facetas da desistência e sua influência sobre nossa psique e jornada existencial. O psicanalista e psicoterapeuta britânico se debruça sobre concepções convencionais de sucesso e fracasso para propor uma reflexão tão inovadora quanto libertadora acerca do papel da desistência na formação da identidade e na busca pelo significado na vida.
“Será que conseguimos qualificar o sacrifício sem nos deixar ser indevidamente impressionados por ele, sem glamurizá-lo, seja como tragédia, seja como farsa? Será que conseguimos atentar para a distração do sentimento de superioridade interior gerado pelo sacrifício, sem nos sentirmos superiores por reconhecê-la? Ou melhor, podemos falar sobre desistir — requalificar a desistência — como um útil indício de nossa complexidade moral e emocional, em vez de mais uma de nossas provações prediletas?”
— Adam Phillips, em trecho de Sobre Desistir
O ponto de partida da obra é uma provocação fundamental: o que realmente significa desistir? Com texto suave, fluido e para lá de acessível, o autor recusa o academicismo afetado e consegue nos instigar a questionar nossas noções preconcebidas sobre esse ato tão malfadado, desafiando a ideia de que desistência é igual a fracasso. No lugar, vemos sobreaguar uma perspectiva nova que chega a ser um respiro de alívio: e se tomássemos a desistência como um ato de coragem e discernimento? E se ela fosse uma oportunidade de abandonar aquilo que não nos serve mais e abrir espaço para novas possibilidades de crescimento e descoberta?
“Se encaramos a desistência como uma catástrofe a ser evitada, que imagem formamos da desistência de fato? Quando não nos deixamos afetar demais pela desistência, percebemos aquilo que valorizamos. Criamos todo um mundo a partir disso.”
— Adam Phillips
Ao longo do livro, Phillips tece uma rica tapeçaria de ideias, recorrendo a uma ampla gama de referências literárias, filosóficas e psicanalíticas para enriquecer sua análise (sem parecer que está se esforçando demais para tanto). Autores que vão de Franz Kafka e William Shakespeare a Sigmund Freud, Jacques Lacan, Donald Winnicott e Friedrich Nietzsche são convocados para iluminar diferentes aspectos dessa desistência phillipiana e toda a relação com questões mais amplas, como identidade, liberdade, desejo e autenticidade.
Desistir, ao contrário do que se prega amiúde, pode ser um ato supremo de livre-arbítrio, uma atitude que pode nos definir não como pessoas perdedoras ou ressentidas, mas como pessoas donas de nós mesmas, verdadeiras conhecedoras de nossas vontades e limites. Entregar os pontos talvez não seja o fim do mundo, mas o começo de um universo que esteja mais de acordo com a essência que nos cabe.
Uma das contribuições mais significativas do livro, portanto, é a exploração da relação entre desistência e autoconhecimento. Phillips argumenta que a desistência pode ser vista como um ato de autoconsciência e maturidade, permitindo-nos priorizar valores mais profundos e significativos em nossas vidas. Ao abandonarmos objetivos que já não nos servem mais, seja lá por qual razão, abrimos espaço para um crescimento autêntico e uma maior integridade pessoal. Essa é uma cena que deveria nos emocionar: quando abrimos mão de alguma coisa para lançá-la a outras empreitadas.
“Talvez não precisemos pensar na vida em termos de perdas e ganhos, ou lucro e prejuízo, como a ideia de desistir pode implicar, reforçando assim uma norma cultural muito apreciada. Talvez não precisemos perder a vida para encontrá-la; podemos simplesmente procurá-la por aí (encarar o luto talvez não seja o que mais queiramos fazer, nem a única coisa a ser feita, nem aquilo que somos obrigados a fazer). Talvez tenhamos subestimado nossas tentações. Pode ser que tenhamos nos distraído com uma analogia.”
— Adam Phillips
Há uma complexidade moral e existencial na desistência, o que causa inúmeras tensões entre desejo e renúncia, liberdade e responsabilidade. A decisão de desistir, como nos lembra Phillips, muitas vezes envolve um delicado equilíbrio entre nossos impulsos individuais e nossas obrigações éticas e sociais. Ao reconhecermos a importância da desistência como um aspecto fundamental do crescimento humano, podemos libertar-nos das expectativas opressivas da sociedade e abraçar uma maior autenticidade e plenitude em nossas vidas.
“Pretendo sugerir neste ensaio que existe uma parte de nós que precisa saber o que está fazendo, e outra parte que precisa não saber. E, na mesma medida, existe uma parte de nós que precisa saber o que quer e outra que precisa não saber. Há liberdades conectadas a ambos os aspectos de nós, que animam um ao outro — nossa vontade depende de sabermos e de não sabermos o que queremos.”
— Adam Phillips
Nas conclusões, como muitos capítulos finais, voltamos a memórias de infância. Será que são autênticas? E quais são suas funções? Na discussão, o autor destaca: “As memórias que temos nem sempre são passíveis de confirmação alheia nem são compartilhadas pelas pessoas que parecem fazer parte delas.” Essa observação levanta dúvidas sobre a confiabilidade das lembranças e ressalta a natureza solipsista e fugidia da infância quando rememorada.
O autor também aponta para a ideia de que as memórias de infância podem ser mais como “sonhos ou cenas simbólicas que simplesmente codificam os desejos da infância”, ao invés de representações precisas de eventos reais. Ele sugere que essas memórias são mais uma “memória do desejo, não de uma verdade histórica”, o que nos leva a questionar o que realmente estamos recordando quando pensamos em nossa infância.
“É na infância que aprendemos pela primeira vez a abrir mão das coisas. É na infância que somos introduzidos aos benefícios e ao sofrimento muito real implicados na frustração. E, sobretudo, é na infância que somos encorajados a abrir mão de nossa megalomania — nossa presunção onisciente e onipotente de que o mundo é organizado pelo que precisamos e queremos — e a reconhecer gradualmente que as pessoas de que precisamos não estão nem podem estar sob nosso controle remoto. Em outras palavras, tornou-se impossível conversar sobre o crescimento sem conversar sobre o sacrifício. A questão é sempre: o que temos de sacrificar para nos desenvolver, para seguir para o próximo estágio de nossa vida?”
— Adam Phillips
A reflexão sobre o propósito e a função da memória também é destacada, com o autor levantando a questão sobre o que as pessoas buscam ao recordar sua infância. Ele pergunta: “Falar sobre a infância é uma maneira de querer o quê? Ou de falar sobre o quê?” Essas perguntas nos convidam a considerar o significado mais profundo por trás de nossas lembranças e a refletir sobre o papel que elas desempenham em nossa identidade e compreensão de nós mesmos — e é aí que o ciclo do livro se fecha.
Sabemos o que queremos? Talvez menos do que estamos dispostos a admitir a nós mesmos. Sendo assim, como seria possível demonizar tanto o ato de deixar de correr atrás de algo? Ou, então, de buscar constantemente aquilo que supostamente nos faz viver. Ao deixar de lado algumas noções criadas a partir da infância, abrimos brechas em nossa vida e nos questionamos sobre o propósito e o significado delas. O que estamos sacrificando ao nos desenvolvermos? E como essas renúncias moldam nossa jornada rumo à idade adulta?
“Sabemos o que queremos? Talvez menos do que estamos dispostos a admitir a nós mesmos.”
No meio dos pontos de interrogação que inundam toda e qualquer rotina, desistir não parece de todo ruim: é mais um fato da vida. Em determinadas circunstâncias, desistir é a atitude mais heroica que há.
Nossas construções são edificadas sobre bases pouco confiáveis e, muito embora sejam tudo que temos, é importante não depositar nelas todo o nosso peso — é assim que a casa cai.