à orla do mundo
ela possuía tão pouco, e eles haviam tocado.
— preciosidade, clarice lispector
a rua era sigilo. nas primeiras horas do dia, um mundo que o sol ainda não tinha tocado me era oferecido como um manequim na vitrine. a madrugada era fresca e escura, e o resto de noite cobria as fachadas das casas, onde dormiam famílias felizes. sempre que eu saía cedo, caminhava com a firmeza de um autômato. os movimentos estacados de meus braços e pernas eram uma tentativa de esconder traços mais gentis, que àquela hora da manhã me punham vulnerável.
e assim seguia o meu rumo. antecedia no expediente as funcionárias das creches, mas não os padeiros. acompanhada pela algazarra dos pássaros, atravessava a parte residencial do bairro até que meu caminho alcançasse a grande avenida, onde iria pegar o ônibus.
era a primeira vez que faria faxina para aquela família, então a cliente me pediu que eu fosse cedo. chegando lá, a dona da casa me revistou com olhos de curiosidade e disse:
engraçado, acho que me enganei. tinha entendido que sua mãe mandaria o filho.
àquela altura, já estava me acostumando a inventar uma filha que minha mãe não tinha. que ela não tinha ainda. naquela rápida mentira, fui minha própria irmã. a dona da casa me acompanhou pelos cômodos, indicando o que queria que eu fizesse. de vez em quando, entre as explicações, ela lançava os olhos para mim. talvez quisesse garantir que eu estava entendendo, talvez estivesse tentando decodificar o meu corpo.
a faxina exigia roupas velhas e movimento desimpedido, e eu aproveitava as demandas do serviço para saborear a liberdade. shorts curtos, camisetas folgadas. se poucos meses antes meu torso respirava com dificuldade dentro de um uniforme escolar masculino, agora podia experimentar algo novo. não sabia muito como, mas entendia que precisava me construir.
eu não era mais obrigada a aguentar os meus colegas, que faziam questão de me lembrar diariamente que eu não me encaixava. aos olhos dos algozes do meu tormento diário, eu era afeminado demais para me encaixar propriamente no mundo dos rapazes, mas o acaso de ter nascido menino parecia me condenar a um dia ser homem. eu então me refugiava daquele cotidiano nos livros que lia e me perdia nas fantasias de desejar uma vida diferente para mim.
uma vez, durante o ensino médio, saí para me aventurar numa boate, dessas que nem pedem para ver o documento de identidade. lá conheci uma travesti uns anos mais velha, e a escutei com a atenção que a gata borralheira certamente deu às palavras mágicas da fada madrinha. no tempo de três cigarros, ela me ensinou quais hormônios eu deveria tomar. anticoncepcionais comuns, desses que qualquer mulher compra sem receita. ouvi encantada os relatos distantes de uma vida possível.
agora, nem terminava o segundo ano de uso e o meu corpo já apresentava sinais de mudança. a minha magreza andrógina havia se tornado mais curvilínea, para meu imenso prazer. por isso, quando ia trabalhar na casa de alguém, eu me vestia com o que me permitia o conforto, tanto no movimento quanto na expressão. mesmo que as roupas não fossem propriamente femininas, eu pensava, ao menos deixavam dúvida.
quando a dona da casa terminou de passar aquelas primeiras orientações, mais uma vez senti seu olhar em mim, de cima a baixo. por fim, elogiou meu cabelo. por instinto, para demonstrar que sabia qual era o meu lugar, logo o prendi em um rabo de cavalo. ela repetiu o elogio, como se falasse para si mesma, numa voz que me pareceu genuína. talvez eu tivesse de fato atravessado a fronteira do país mulher sem ser revistada.
naquela época, meu cabelo já chegava no meio das costas. eu vinha cultivando-o desde a adolescência, com aprovação decidida da minha mãe, que defendia a minha escolha frente aos protestos escandalizados de suas irmãs. quando passou dos ombros, ela começou a me ensinar como cuidar dele. por vezes, sentava na minha cama, penteando e trançando os fios, silenciosamente, tecendo para mim uma beleza que me confortasse.
*
habitar deixa vestígios, e minha função era apagar os resquícios da semana e fazer com que o espaço doméstico retornasse a uma espécie de encarnação ideal, como saída de um catálogo de revista.
conforme retornava para fazer faxina naquela casa, sempre aos sábados, ia me habituando a ler os sinais de como tinha sido a semana. era comum encontrar um travesseiro no sofá, com um copo de água vazio ao lado: o marido tinha dormido na sala. ao lado da poltrona da biblioteca, num móvel de apoio, uma taça de vinho com marcas de batom e um livro: a esposa tinha ido dormir tarde.
era comum que a esposa passasse a manhã fora e que o marido fizesse o mesmo durante a tarde. costumavam alternar. eram professores universitários, e aos finais de semana tinham assuntos pessoais para tratar.
ela tinha um porte altivo e me tratava com uma cortesia seca. caminhava pela casa com a certeza de que era dona do império que havia herdado de uma família com muito bom gosto. tapetes, vasos e estantes cheias de livros adornavam os cômodos e acumulavam poeira.
tinha uma poltrona velha e estampada que ficava de canto, na qual a dona da casa sentava, às vezes por uma ou duas horas. ao lado dela, ficava um aparador de madeira escura, e em sua gaveta se guardavam pequenos utensílios. em cima do aparador, um vaso em que toda semana havia flores novas.
sentada naquela poltrona, eu a via pequena. quando pegava materiais de costura, parecia que algo nela murchava. ela tinha me dito que naquela gaveta estavam pertences da mãe, já falecida. entre os materiais, havia uma tesoura de metal adornada. uma relíquia. com ela, cortava tecidos para projetos que não iam adiante. algumas vezes, a vi iniciar e interromper a costura de uma gravata.
o luto — fui entendendo —, ela guardava na mesma gaveta, junto com memórias que compartilhava comigo em migalhas nesses momentos em que se sentava para costurar. ela se abria; eu ouvia em silêncio. a impressão que me passava era de que havia ali uma esperança de que ela pudesse herdar também o esmero com que a mãe costurava cortinas, sarava febres, assava bacalhau nos domingos de páscoa.
eu ouvia mais do que falava, e respondia de maneira rápida, porque temia que algo em minha voz me entregasse. a qualquer momento os rastros que a puberdade de menino havia deixado poderiam me trair, então abrir a boca era um risco calculado. além de tentar enfraquecer a voz, eu era breve e não deixava margem para perguntas. prezava por uma comunicação sem fios soltos. sim, senhora. entendido. é pra já. o medo de levantar a voz era conveniente à minha mulheridade em construção.
com o marido, inicialmente, não quis muito papo. a princípio, eu não dava corda, mas ele era gentil, e eu não estava acostumada a receber atenção. até então, os garotos me tratavam com nojo; as garotas, com indiferença; os adultos à minha volta, com omissão. ele era boa-pinta e aparentava ser mais jovem do que era.
se, nas concretudes da vida doméstica, ele parecia ter dificuldade com a organização — os pratos que empilhava caoticamente no escorredor, a bagunça que negligenciava —, na conversa, ele era especialista. articulava histórias e explicações de forma encantadora. eu sentia que ele via em mim alguém com quem compartilhar. alguém para ensinar. em outra situação, eu poderia ser sua pupila. naquelas conversas, ele se fazia professor, e eu me forjava sua aprendiz. durante a manhã, eu inventava mais pausas no serviço do que era necessário, só para poder falar com ele. ele parecia retribuir o interesse. e se no começo ele fechava as portas do escritório, depois de um tempo passou a deixá-las abertas. se eu parava para descansar, logo ele aparecia como quem não quer nada e me oferecia um cigarro. fumávamos, e ele sorria para mim.
*
a casa era toda impressionante, mas o que mais me chamava a atenção era a cristaleira. na parede acima dela, assim como em sua superfície, ficavam pratos decorados — os da parede, pendurados; os da cristaleira, com pequenos apoios. era cada prato mais bonito que o outro, a maioria com indicação de onde tinha sido adquirido: ouro preto, salvador, recife, lisboa, santiago de compostela, barcelona, marselha, milão, nápoles.
uma vez, enquanto tirava o pó da cristaleira e passava um pano nos pratos, comentei sobre aquela decoração com a dona da casa. já fazia um tempo que trabalhava lá. disse que devia ser incrível ter conhecido tantos lugares. ela pareceu reparar em qual prato eu estava segurando e deu um passo à frente, encostando no móvel.
a itália é linda nesta época do ano, principalmente nápoles. ela fez uma pausa e explicou, como se eu não soubesse: nápoles é uma cidade muito importante da itália.
eu sei, já li uma história que se passava por lá. era o primeiro de uma série de quatro livros.
você conhece elena ferrante?
sentindo que precisava me justificar, respondi: é, quem me emprestou foi uma professora de português que eu tive.
sem muita firmeza, ela indagou se eu gostava de ler. quando respondi que estava estudando, no meu tempo livre, para prestar o vestibular e que gostaria de seguir os passos daquela professora, ela me assegurou, amistosa:
sabe, tem umas universidades que dão um bom desconto na mensalidade se você for bem na prova.
na verdade, quero fazer faculdade pública. não paguei para estudar a minha vida inteira, não é agora que vou começar.
ela passou o indicador por cima da cristaleira, traçando um curto caminho, levantou o dedo e o esfregou contra o polegar. sem olhar para mim, disse: o vestibular de uma universidade pública é bem difícil, sabia?
*
um dia o marido disse que estava tentando parar de fumar. levei um baque com o que deveria ser um simples comentário — fiquei preocupada que as nossas pausas pudessem chegar ao fim. então ele tirou do bolso pastilhas de hortelã. entendi que eram como o vício que ele queria abandonar, mas traduzido para outros mecanismos. me ofereceu.
ele era um desses homens que não deixam a conversa morrer. não parecia capaz de permitir que brotasse, numa conversa, qualquer coisa que não lhe dissesse respeito. aquela fome me fascinava. naquele dia, enquanto chupava as pastilhas, ele me mascava com os olhos.
me convidou para o seu escritório. fui. ele colocou a mão na minha cintura. deixei. quando ele me puxou para perto de si, seu corpo pareceu dobrar de tamanho. seus lábios no meu pescoço, o hálito fresco. sussurros no ouvido, dedos nos cabelos. meu pescoço fresco, seus lábios no meu ouvido, sua mão na minha nuca, meus cabelos roçando seu gesto.
eu sentei na escrivaninha e ele tirou minha camiseta num sussurro ligeiro. levou a boca até meus peitos. meus peitos agora de moça, beijados com voracidade. sua mão em fúria saiu de minha cintura e foi parar onde eu temia. interrompi o movimento. aí não. aí onde se encerrava meu corpo de mulher, não.
nos seus olhos vislumbrei que ele entendia. cedi. desenhou no meu corpo algo que eu não sabia que poderia existir ali e me chupou como se chupa uma mulher.
*
na semana seguinte, cheguei cedo como de costume, como havia feito todas as manhãs de sábado até então. quem abriu a porta foi a esposa. disfarcei minha surpresa e prendi meu cabelo em um rabo de cavalo. a casa parecia toda revirada, e prontamente comecei a arrumação. ela me seguia com os olhos. nenhum sinal do marido.
o que você quer, sua louca? eu me perguntava, sem que palavra alguma ousasse sair da minha boca.
ecoando aquilo que eu pensava, ela quebrou o silêncio: o que você quer?
como assim?
o que você veio fazer na minha casa?
sua voz vacilava.
ué, o que eu venho fazer toda semana.
como ela tinha descoberto?
um sorriso ameaçou surgir no canto de sua boca. ah, então quer dizer que vocês fazem isso toda semana? é rotina, então, sua vagabunda?
você endoidou, é?
dei um passo para trás.
ela deu um passo para frente.
sua puta, eu devia ter imaginado que ia dar nisso.
ela me mostrou uma embalagem de camisinhas vazia.
merda. a senhora não me ofenda. minhas costas toparam com a cristaleira.
você seduziu meu marido, seu traveco desgraçado? ela veio, bufando. seu pervertido. monstro.
encurralada, cuspi: talvez se você fosse capaz de dar o que ele precisa, ele não teria vindo atrás de mim.
ela me deu um tapa forte no rosto. revidei. ela me deu um empurrão, e meu corpo chacoalhou o móvel que estava atrás de mim. um dos pratos decorados caiu e se despedaçou. ao ver os cacos de uma de suas viagens espalhados pelo piso, ela ficou irada.
tentei me afastar, mas como uma jararaca ela saltou na minha direção, agarrando meu pescoço. até que consegui jogar o peso do corpo dela contra o chão. nos derrubamos e caímos, tombando conosco o aparador de madeira escura e tudo o que havia ali. o vaso com flores se espatifou. rolando no chão, ela tentava me agarrar e eu a empurrava para longe.
viciosa, grudou sua garra no meu cabelo. no instante que dura um fôlego oceânico, ela segurou meu rabo de cavalo para cima. durante aquele segundo, não reagi. não vi o momento em que ela pegou a tesoura. com um único golpe decidido, ela avançou as lâminas contra o elo que unia o topo da cabeça e o restante do cabelo, repetindo o gesto de dalila, mulher ambiciosa.
do chão, vi seu corpo levantar. em suas mãos triunfantes, o comprimento do meu cabelo, como a cabeça de uma besta degolada.
eu, a criatura. ela não tinha o que temer, só precisava de um monstro para conseguir viver em paz.