Folhinhas, série de Manuela Costa Lima. A artista assina a capa da edição Amarello Família. Foto de Mario Grisolli.
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Água de barrela: mais cedo ou mais tarde a justiça se fará

“No fundo, ela achava que o que se queria mesmo
era que tudo fosse mergulhado nessa água que branqueia:
as roupas, as vidas, as pessoas…
Todos mergulhados na água de barrela.”

Água de barrela, de Eliana Alves Cruz, é uma obra que transcende a forma de uma narrativa tradicional, mergulhando nas profundezas da história e da memória para revelar as experiências de vidas negras através de gerações. O livro é uma saga familiar que conecta passado e presente, explorando as consequências da escravidão e as formas como os descendentes de africanos escravizados lutam para preservar sua identidade em meio à opressão e à diáspora.

A narrativa começa com a celebração do aniversário de uma das personagens, que, após viver um século marcado por inúmeras lutas, perdas, alegrias, tristezas e, acima de tudo, resiliência, chega a este marco dos 100 anos. Damiana, figura central da história, exausta das batalhas incessantes e contínuas que enfrentou em busca de liberdade, encontra-se cercada por sua família e relembra os tempos em que trabalhava como lavadeira.

O título, Água de barrela, remete à prática ancestral de lavar roupas com uma mistura de água e cinzas, uma metáfora poderosa para o processo de limpeza e purificação das memórias que a obra realiza. O uso deste termo, carregado de significados históricos e culturais, estabelece desde o início o tom do livro: uma busca por lavar as manchas do passado, ao mesmo tempo em que se preserva a memória viva dos que vieram antes de nós.

A esposa de Gowon, Ewà Oluwa, ao contrário, caiu num choro estridente e num desespero contagiante. Foi imediatamente esbofeteada. Ewà Oluwa honrava o nome que tinha, que significava “beleza de Deus”. Ela e Gowon tinham se casado há pouco mais de dois meses numa festa alegre, cheia de vida e com muitas danças e promessas. Ela era de Ketu e a união foi parte de um arranjo feito por seu pai com a família dela, em suas andanças comerciais. Decidiram juntar a família e as forças trocando armamentos, víveres e artefatos para resistir aos constantes conflitos e períodos de escassez.”

As inúmeras mulheres negras retratadas no romance Água de barrela, de Eliana Alves Cruz — obra que conquistou o Prêmio Literário Oliveira Silveira da Fundação Palmares em 2015 —, encontraram nos trabalhos de lavar, passar, enxaguar e quarar as roupas de patroas e sinhás brancas uma forma de sustento ao longo de quase trezentos anos de história, desde o período colonial do Brasil até o início do século XX.

Os primeiros a chegar são Akin Shangokunle, que mais tarde é batizado como Firmino, e sua cunhada Ewà Oluwa, grávida de seu irmão Gowon. Eles vêm da região do reino de Oió e sobrevivem aos horrores da travessia no navio negreiro. Ao chegarem ao Brasil, são comprados pela família Tosta, cujos destinos se entrelaçariam profundamente com os de Akin e Ewà. Apesar dos imensos sofrimentos, Ewà consegue dar à luz uma menina chamada Anolina, que daria continuidade à história, à memória e às lutas dos que vieram da África.

Eliana Alves Cruz demonstra uma habilidade singular em tecer as histórias de seus personagens com um profundo respeito pela tradição oral, uma característica central da literatura negra. A narrativa é conduzida por vozes que ressoam através do tempo, combinando histórias de diferentes membros da família, desde a captura de africanos na costa de Angola até a vida no Brasil contemporâneo. O livro explora não apenas o trauma da escravidão, mas também a resistência, a resiliência e a força que sustentaram gerações de mulheres e homens negros.

A autora utiliza uma estrutura narrativa que alterna entre diferentes períodos históricos e pontos de vista, o que confere à obra uma complexidade e uma profundidade raras. Através dessa técnica, consegue capturar a continuidade e a ruptura nas experiências de seus personagens, mostrando como as cicatrizes da escravidão continuam a influenciar as vidas de seus descendentes. Este movimento temporal não é apenas uma escolha estilística, mas uma forma de resistir à linearidade da história colonial, que muitas vezes tenta silenciar ou simplificar as experiências negras. Cada figura carrega consigo as marcas de sua história pessoal e coletiva, o que é evidenciado pela maneira como a autora explora as dinâmicas familiares, os relacionamentos interpessoais e as interações com o mundo exterior. A partir dessas interações, Cruz expõe as nuances das identidades negras, abordando temas como pertencimento, alienação, resistência cultural e espiritualidade.

Um dos aspectos mais notáveis do livro é a forma como retrata a espiritualidade negra. A religiosidade não é apresentada apenas como um consolo diante do sofrimento, mas como uma força ativa de resistência e afirmação identitária. O sincretismo religioso, presente nas práticas espirituais de muitos personagens, é uma resposta direta à opressão colonial, e Cruz trata esse tema com um respeito e uma sensibilidade que são raros na literatura brasileira. A espiritualidade é apresentada como uma fonte de poder, uma ligação direta com os ancestrais e um meio de preservar e transmitir a cultura negra.

A partir de uma linguagem lírica e evocativa, que captura a beleza e a dor das experiências descritas, a obra faz uso de metáforas e simbolismos com maestria, criando imagens poderosas que permanecem em nós muito tempo após a leitura. A prosa poética da autora não apenas narra a história, mas também a vivifica.

Além disso, a obra também nos convida à reflexão crítica sobre o legado da escravidão no Brasil contemporâneo. A autora não permite que o leitor se distancie da realidade apresentada; ao contrário, ela o confronta com as continuidades da opressão racial, que se manifestam de formas sutis e explícitas. Encontramos, então, uma denúncia da persistência do racismo estrutural e um chamado à ação para a transformação social. Além disso, o livro também caminha no sentido de uma possível reparação histórica. Ao evocar a voz de figuras históricas que foram silenciadas pela história oficial, Eliana Alves Cruz reescreve a narrativa do passado, colocando os negros como protagonistas de sua própria história. Esse gesto de reescrita histórica é um ato de resistência, uma forma de reivindicar a humanidade e a dignidade de um povo que foi brutalmente desumanizado.

— Pois eu vou lavar as privadas desses brancos, vou lavar louça, roupa, passar, engomar… Mas ninguém depois de mim vai fazer isso outra vez na minha família, está ouvindo bem? Ninguém!”

A interseccionalidade é outro aspecto crucial da obra. Cruz explora como as diferentes formas de opressão — racial, de gênero, de classe — se entrelaçam na vida de seus personagens. As mulheres negras, em particular, ocupam um lugar central na narrativa, sendo retratadas não apenas como vítimas, mas como agentes de mudança, que desafiam as estruturas de poder e lutam por sua autonomia. A autora aborda com sensibilidade as questões de gênero, mostrando como as mulheres negras enfrentam a dupla opressão do racismo e do sexismo, e como elas constroem redes de solidariedade e resistência.

Ao longo de gerações de mulheres que foram lavadeiras, empregadas domésticas, amas de leite e vendedoras de comidas típicas como doces e pamonhas, essas personagens negras mostram que, desde o período da escravidão até os dias atuais, elas desempenharam um papel crucial como força de trabalho. Muito antes de as mulheres brancas lutarem pelo direito de trabalhar fora de casa, as mulheres negras, anteriormente escravizadas e depois libertas, já contribuíam economicamente para manter o status quo dos senhores brancos e, mais tarde, para garantir o sustento de suas próprias famílias. Através da criação de redes de solidariedade, movidas por um sentimento de irmandade, essas mulheres negras abriram caminho para um futuro mais digno, livre e menos explorado para seus descendentes.

Além de destacar o papel crucial desempenhado pelas mulheres negras, o romance também questiona a celebração da liberdade proclamada pela Princesa Isabel. Como observa Damiana, o que a sociedade brasileira buscava, e ainda parece buscar, é o completo esquecimento do passado negro e escravocrata, além do genocídio da população negra e a destruição das tradições e culturas africanas.

Ao se olhar no espelho, depois de tantas gerações marcadas pelo racismo, sexismo, segregação e opressão, Damiana reflete se realmente há algo a ser celebrado. Ela questiona se o tão exaltado 13 de maio trouxe algum impacto real na vida dessas pessoas que continuam aprisionadas. Para as personagens do romance, desde Firmino e Helena até Damiana e suas filhas, netos e bisnetos, o legado da escravidão ainda é uma realidade, presente na falta de oportunidades, na miséria e na humilhação. Enquanto o passado parece estar sempre presente para as personagens negras, as personagens brancas se agarram ferozmente ao poder que mantiveram durante séculos, sustentadas pelo trabalho de negros e negras.

A terra, o trabalho, as pessoas tudo pode ser igual, Martinha, mas os lugares de cada um, ah, esses é que nunca mais serão os mesmos!”

No campo acadêmico, “Água de barrela” pode ser visto como uma contribuição importante para os estudos de literatura negra, estudos de gênero e história social. A obra dialoga com a tradição literária afro-brasileira, ao mesmo tempo em que introduz novas perspectivas e questionamentos. A forma como a autora lida com memória, história e identidade oferece material rico para análise crítica, especialmente no que diz respeito às representações da negritude e à desconstrução das narrativas coloniais. Através de sua narrativa, somos desafiados a confrontar as verdades incômodas da história brasileira e a reconhecer as vozes que foram silenciadas por tanto tempo. O livro é leitura essencial para aqueles que desejam compreender a profundidade e a complexidade da experiência negra no Brasil.