Guia dos sertões das galáxias: que sorte, uma flor!
Dia desses, na modorra da sesta vadia na praia de Itamambuca, pensei ter protagonizado um instante que mudaria o curso da história humana — ainda que deitado na rede da varanda de casa. Desculpe nisso a imensurável prepotência, amigo leitor, mas sou carioca e programações mentais se impõem, sabe como é. É que achei ter testemunhado um gato, deitado ao muro em expediente similar ao meu, contemplando a beleza de uma flor, apenas pelo ato de contemplar. Daí que não faz muito tempo, pensei, uma maçã caiu na cabeça de um sujeito e aqui estamos, três séculos e meio depois, em desfrute do mapa das leis que regem a natureza, facilitando a construção de nossa sempre inédita prosperidade.
“Viver imerso em desafios de vida e enfrentá-los, portanto, é uma dieta saudável ao cérebro”
Ocorre que, ao que se sabe cientificamente, a contemplação da beleza de uma flor ou qualquer outro elemento da natureza, como um ato puramente estético — “apenas por contemplar” – é algo que estaria restrito aos humanos. Não há evidências claras de que outros animais tenham a capacidade de apreciar a beleza visual da maneira que fazemos, isto é, de forma desinteressada e sem um propósito funcional, como a busca por alimento ou parceiro reprodutivo. Lamento por eles, sendo este o caso. Embora não seja exatamente essa a razão de nossa prevalência cênica no planeta, ainda assim é, literalmente, a parte mais bela da vida humana; e diria que a mais honrosa, num exame mais artístico da biologia.
No fantástico livro Uma nova terra, Eckhart Tolle começa sua explicação espiritual exaltando a beleza estética das flores como um portal para a iluminação. As primeiras delas, manifestos aleatórios de uma forma de vida que ainda tentava emplacar, despontaram em terras hostis como lampejos frágeis, em meio à aridez do mundo. Como rebeldes silenciosas, suas pétalas se abriram ao sol inclemente, sem garantias de permanência, sem promessas de multiplicação. O milagre de sua existência parecia, a princípio, um evento efêmero, perdido entre as forças brutais da natureza. Ainda assim, floresceram. A beleza das flores não é apenas visual, mas existencial, pois representa o triunfo da vida sobre a dureza, a transformação do ambiente adverso em algo que colore, perfuma e impõe nova estética ao planeta.
Nesse sentido, não seria esticar demais o argumento reconhecermos a mesma beleza, intrinsecamente, na existência de outras espécies e manifestações de vida, sobretudo nossa própria. E nesse fio, por sua vez, quem mais seriam rebeldes silenciosos sob a inclemência do sol, manifestos da resiliência da vida perdida florescente entre forças brutais da natureza, senão povos como o do sertão brasileiro? É provável que Tolle jamais tenha lido Os sertões, de Euclides da Cunha, mas suas flores estão lá, manifestas pelos olhos daquele homem, já que beleza não faz parte da física engendrada pelo sujeito da maçã (dos três séculos e meio atrás), e sim da quântica, se está nos olhos de quem vê.
Se é verdade — e é — que a romantização da miséria humana alimenta consequências perversas, devemos ainda assim reconhecer que a vida revela sua verdadeira essência no ato contínuo da luta por sobrevivência. A própria flor, em sua breve existência, não vive para ser contemplada, mas, ao resistir e florir, se torna o que há de mais contemplativo no mundo. Nenhuma aspereza em sua luta apaga sua beleza. Ao contrário, a sublinha. Por isso a redundância sentimental de seres humanos modernos, não os do sertão, mas de abundantes metrópoles, que sentem suas vidas como carentes de essência.
Sobre isso, entre tantas descobertas da neurociência moderna, nenhuma parece a mim, pobre homem leigo, mais sugestiva que a descoberta do córtex cingulado anterior médio e seu comportamento, de acordo com recentes, mas abundantes dados de estudos feitos em nós, humanos. Ao que parece, essa pequena área cerebral está completamente envolvida no processamento de emoções, regulando nossas respostas em situações que envolvem conflitos, dores ou dilemas, aquilo que chamamos de inteligência emocional. Ocorre que — e os estudos o mostram —, ela é também uma área que cresce quando fazemos coisas que não gostamos, mas precisamos fazer, isto é, tarefas que exigem força de vontade; e encolhe quando empacamos em zonas de conforto.
Assim, repara-se que esse espaço cerebral é notadamente maior em atletas e obstinados, e maior ainda naqueles que percebem a si mesmos como superadores constantes de obstáculos da vida. Seu tamanho parece também estar associado à longevidade, e alguns cientistas chegam a chamá-la não somente de músculo da força de vontade, mas o da vontade de viver e acontecer. Como outros músculos, não custa repetir, seu tamanho é modelável de acordo com o comprometimento real do indivíduo, não é uma questão totalmente fatalista, de fardo da natureza.
Viver imerso em desafios de vida e enfrentá-los, portanto, é uma dieta saudável ao cérebro. Mais que saudável, parece imperativa ao nosso sucesso emocional. Talvez seja essa a descoberta que fecha o circuito de tantas dúvidas existenciais do homem, ou ao menos daqueles que, como eu, têm o privilégio do tempo e da segurança física para tanto. Até mesmo a máxima de que liberdade é fazer aquilo que não queremos, algo que Immanuel Kant não exatamente escreveu, mas é facilmente interpretável através de sua obra sobre filosofia moral, parece a tradução literal dessa descoberta científica. Nesse sentido, tanto é admirável o homem do sertão, alheio a tal debate exatamente por já ser sua conclusão, quanto seu retrato, traçado na referida obra literária brasileira, encaixa-se perfeitamente a todos nós, humanos de toda e qualquer parte de nossa pequena vila, o planeta Terra.
“Não por acaso, grandes obras literárias são sempre jornadas ao interior do homem”
Em Os sertões, afinal, a jornada pelo deserto brasileiro não é uma exploração geológica, mas sociocultural e histórica. O sertão euclidiano, um terreno inóspito e árido, é, ao mesmo tempo, fidedigno à realidade física e um espaço metafórico ao leitor, tão desafiador quanto solos fictícios de outras leituras consagradas, como na Viagem ao centro da Terra, de Júlio Verne. Ao descrever o conflito de Canudos, Euclides sugere que a verdadeira batalha ocorre dentro do homem, em sua tentativa de compreender e sobreviver à brutalidade do ambiente. O sertão, para ele, é tanto realidade física quanto alusão à resistência interna de nós contra nós mesmos, da luta por identidade e sobrevivência.
No clássico fantástico de Verne, analogamente, o protagonista Axel e seu tio embarcam em uma expedição geológica para desbravar o desconhecido mundo subterrâneo. À medida que descem pelas profundezas do solo, enfrentam desafios que exigem coragem, raciocínio e superação de medos. Ao confrontar o abismo físico, simbolicamente, Axel encara o abismo de suas próprias limitações:
“Devo confessar que esta viagem ao centro da Terra produziu em mim um efeito profundo. Fiquei diferente do que era antes. Minha vida interior ganhou uma nova direção; fui levado a reflexões profundas e a uma serenidade de espírito que eu não possuía antes da expedição.”
Por essas e outras, não por acaso, grandes obras literárias são sempre jornadas ao interior do homem. Assim, acima de tudo, é fundamental o esforço de mergulharmos na literatura como uma experiência, algo que certamente impacta nosso desenvolvimento emocional, e não como informação, algo que, por definição, não constrói aquilo do que somos feitos.
Mas de todas as jornadas existenciais em que a humanidade anda envolvida no mundo real, atualmente, nenhuma é mais fascinante do que a corrida espacial moderna. Não sei o amigo leitor, mas considero sacrilégio intelectual a resistência do cidadão comum, sempre aquiescido como alienado, a acompanhar a abundante e fenomenal quantidade de façanhas, imagens e degraus conquistados, numa nascente nova era de Grandes Navegações rumo ao desconhecido. Se os sertões por aqui são inóspitos, o que dizer daquilo que já vimos em Marte, nosso vizinho mais próximo? Ainda assim, planos de ocupá-lo seguem em construção metódica, provando que nada é mais valioso neste universo do que a inteligência.
Neste ponto, aliás, por enquanto tudo também corrobora a constatação de que estamos sozinhos nas redondezas. É engraçado como a ideia do homem sozinho no espaço ofende a virtude fabricada pelo próprio homem, que atribui tais evidências à pouca base de dados e intui tal hipótese como inconcebível, suposto ápice de nossa arrogância. Acontece que as leis da física e da química não se subjugam à moralidade humana, única que obedece a noções como arrogância ou humildade.
Fosse a Terra apenas três graus mais quente ou mais fria (já foi e voltará a ser), não estaríamos aqui, neste instante, no qual em apenas duzentos anos passamos da descoberta da eletricidade para o lançamento de foguetes, robôs andarilhos em Marte e envio de missão a uma lua de Júpiter. A este ritmo, onde estaremos daqui irrisórios mil anos? Melhor, onde estariam criaturas vizinhas a nós, a “apenas” dez mil ou um milhão de anos (nada) à nossa frente, em matéria de inteligência?
Talvez seja mais correto pensar no universo como instantes, e menos como espaços ocupados. Talvez as imagens do robô Opportunity, em Marte, revelem algo análogo à Terra de ontem ou de amanhã, ou ambas, quando o instante não é o propício. Fato é que hoje, enquanto nosso sistema solar parece um sertão sem fim, nossa Terra é a única flor. Como escreveu Tolle, a primeira flor provavelmente não durou muito tempo. Nem a segunda.
Enquanto isso, o homem do sertão, nas palavras de Euclides da Cunha, “é um desbravador de si mesmo, cavando com as mãos nuas a própria resistência, mas sentindo sempre a vulnerabilidade da carne”.
Já a beleza em si, ainda que perecível, é, por outro lado, magnânima. E transforma o filme da sobrevivência numa obra de arte, impecável em sua estética. Sim, o gato em meu muro a vê, mas não é por ela gratuitamente emocionado.
Sobre uma eventual sensibilidade estética de outros mais, galáxia afora, provavelmente não saberemos em vida. Ainda estamos em fase anterior, atrás de água, tal como homens do sertão.