Homens de pouca fé
Dia desses, eu quase desisti. Acordei, tomei um café, fumei um cigarro, mas daí eu subi e tomei os remédios. E arrumei a cama, mais ou menos. Deus não gosta de quarto bagunçado, embora Ele tenha se encontrado com Jonas dentro do estômago de um grande peixe. Eu também estou aqui descumprindo ordens, consciente. Matando a fome do meu “pequeno monstro”, o meu vício. Quando penso que estava no controle, o furacão Milton chegou em São Paulo. Os coqueiros no quintal envergaram. Eu estava justamente, lendo O Método fácil de parar de fumar de novo, e a minha mãe me ligou para falar do aniversário da Mônica.
“Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas me convêm; todas as coisas me são lícitas, mas eu não serei levado sob o controle de nenhuma”1.
Meu vício é uma criança tratada como um adulto escutando um disco do Julio Iglesias. Eu penso, sou nova criatura, ela reaparece, em carne viva, a menina de Mambucaba é quem escuta a história do aniversário da Mônica, desliga o telefone sem força, a casa sem energia elétrica. Ela quem brincava de fumar, de ser a secretária bilíngue da Odete Roitman, assinando os cheques do Unibanco.
Eu desisto logo de manhã cedo. Não porque é o cigarro mais gostoso, segundo o autor do livro, é por causa da abstinência de sono. Alimento o meu pequeno monstro com café e uma garrafinha de lactobacilos vivos, que eu amo. Mas o livro afirma que ninguém ama um relacionamento tóxico. Nenhum viciado, em qualquer substância, de carne e osso ou veneno, ama o seu pequeno monstro. E, de fato, eu odeio o meu pecado. E, de fato, é como um sapato apertado que eu não tiro. É muito bom esse livro. Mas não é melhor que Paulo. Porque faço o que eu não quero, e o que eu quero eu não faço. Não refreio a minha língua. Sou tentada a cada telefonema.
A doutora Ana não acredita na minha Bíblia. Ela fala que o vício é uma doença, que eu não devia me preocupar com isso agora; porque ela acha, mas não fala, que o cigarro é o menor dos meus males. Ela não entende. Abençoado é o homem que resiste à tentação. Eu me sinto o cocô do cavalo do bandido, fumando um cigarro, rejeitando cada palavra do relato do aniversário. Onde está o meu amor ao próximo?
Todo mundo carrega uma cruz, um desassossego. Eu arrumo meu quarto, ainda com a sapatilha brilhante que a tia Kelly escolheu para eu desfilar sozinha, como se eu tivesse condições de uma coisa dessas. Eu não tinha. Eu joguei tudo fora, coisas valiosas, diplomas, coisas da vaidade, coisas do apego, tudo num saco preto de cem litros. Fui para o clube, puxei ferro, almocei um peixinho com legumes, mas guardei a saudade. Como esse vento de 150 km/h derrubando as árvores.
Eu achei que estava de pé. Quando vi os fios jogados no chão da Pedroso, que a Enel não veio consertar, vi o homem deitado, paralítico fazia trinta e oito anos, entendi que o filho do Deus vivo veio, soube que ele vivia naquele estado durante todo aquele tempo. Ele perguntou: “Você quer ser curado?”.
Hoje faz quinze dias que eu não fumo.
O paralítico explicou que era paralítico, os outros passavam na sua frente, “eu não tenho ninguém que me ajude a entrar no tanque”. Então Jesus lhe disse: “Levanta. Enrola a tua esteira e anda”.2
O corpo humano é mil vezes mais eficiente que o homem. Em duas semanas, 99% da nicotina desaparece do organismo, e os sintomas da síndrome de abstinência são tão leves que a maioria dos fumantes nem sequer os percebe. Eu cri.
Na minha pequena fé, menor que um grão de mostarda, eu sabia que poderia mover uma montanha, se quisesse, que dirá uma saudade. Ele me disse: já é chegada a hora de serem testados, humilhados, vomitados, sede sóbrios e vigilantes; resiste.
Não é um método fácil. Foram quatro dias sem luz, o tempo todo estava faltando algo, tabaco, água gelada, bateria, abajur, banho quente. A doutora Ana ficou toda feliz. Porque a neurociência isso, a neurociência aquilo, a perda súbita de um cuidador direto afeta o autocuidado e a disciplina, por isso eu vou no Mambo de pijama, por isso eu como croissant com manteiga, mas agora eu me portei como um adulto escutando um disco do Julio Iglesias.
Às vezes a doutora Ana parece o Al Pacino elogiando o Keanu Reeves na última cena daquele filme/documentário, O advogado do diabo. Tá repreendido, em nome de Jesus Cristo.