Brasa, série fotográfica de Gleeson Paulino, gentilmente cedida para a edição O Homem: Amarello 15 anos. Todos os direitos reservados.

Agora: no cume da montanha, Teresa e o livro. Estamos distantes, em pontos assinalados no mapa, estamos aqui, no cume da montanha, onde começa novamente a falar a noite. Teresa, filha de Joana Vaz de Barros, irmã de Lucrécia e Bernarda, mortas em Évora no ano de 1591, pela Inquisição do Santo Ofício. Teresa, em febre, escapa para o livro, sentindo na memória rude de suas digitais a envergadura gasta da lombada, sugerindo que houvesse mar no título desta linhagem, que à língua de tocar suas impressões nas coisas das palavras, ficasse rugindo a reabertura das águas, o esconderijo delas, no cume da montanha, e desatasse as centenas de violações sugadas pelos corpos marinhos. Da febre de Teresa passam ao largo os guaranis carijós que seu irmão, Pedro, capturara para a exploração enquanto carpia o demônio velho do mundo, estrada afora. Pedro, que assumira o cargo de capitão-mor da Capitania de São Vicente, junto com seu irmão António, que se fizera padre do Recife, detido também pela Santa Inquisição, depois de estuprar crianças no confessionário. Teresa para naquela palavra detido, deixa os dedos nela. Sua outra mão súbita está enfiada em seu próprio umbigo, mais um receptáculo do colar de cicatrizes — ela diz — repetindo com a pálpebra do indicador: detido. Detido, mas não morto como suas irmãs Bernarda e Lucrécia. Detido mas não mulher. E a crista da cicatriz do umbigo ouriça-se como um clitóris cheio de sangue. Teresa reabre o livro, agora com a língua úmida de seu nome. Agora, no cume da montanha. Subiu cedo da noite a encosta da serra do mar, olha do cume a ponta esquiva da areia lambendo o convento dos caranguejos, onde, junto a outras mulheres, se conheceu mulher. Sente o empuxo lunar de fazer nascer a voz, voz flutuante de idosa menina, voz cheia de sua vulva agora colada à capa do livro gasto, o livro molhado, das linhagens. Teresa escreve contra a guerra. Ama profusamente o livro. Confia em sua servidão que não cede a nenhuma impostura. É ele, o caos central que sustentará a noite, a noite de Teresa, os quinhentos anos desta mulher viva, apoiando, agora, o corpo à precisão do gozo de uma vogal cujo agudo é impronunciável, a não ser. A não ser — disse ela — que o vento. A lombada ereta da página ao meio de sua mão, cintilando sob a volumosa cadência que seus dedos sabiam fazer, dedos de mar, Teresa empunhava a voz do livro, chamando-o, ao aceso daquela vogal, sua festiva turbulência, o ponto de giro da dor, finalmente, o rasgo da ferida. É chegada a hora.

À hora dos ventos, deixo-te de lado, livro de linhagens, cicatriz nuclear, fechados tu e eu na página ao meio. É um ritual, só pode ser aprendido no corpo, corpo-a-corpo com as ostras, quebrando-se abaixo de nós no limite das águas e abrindo-se sinuosas, com a língua que insiste em soletrar seu próprio precipício. Só então, depois de concentrados, tu e eu, passo o dedo em teu farfalhar. Uma barcarola chamada Paixão, para Teresa é Livro de Vento. Posso respirar só com o dedo, saber teu pulso pelo felpo. Minha voz perde os muros, ensopa-se com os visgos das algas, com sua própria lentidão em relevo. Vou achando os modos de viajar o vento, deixo entrar na boca seu vaivém hospitaleiro, seu tropeçar dúbio, suas fugas fazendo cócegas na fundura da garganta, criando algo como uma exposição total à ausência de constrangimentos. Devolvendo o corpo ao desconhecimento do medo, limpando as guerras todas, cujos quelóides são agora vértice de prazer. O vento vai temperando a voz e ambos vão desanuviando as tramas do corpo, já arredondando-se sem quinas, tremeluzente e pinçado por arrepios sutis nascidos da coluna e dos ísquios, Teresa com suas ancas imensas sobre o livro. No vento cabem todas as mãos, todos os dedos, todas as músicas. Nas suas páginas todas as línguas falam o s e o t do nome poliforme de Teresa, o nome de seu corpo bicho, seu sexo molhado de fé e alforria. Com a outra mão abaixo a saia, tiro-a por completo, só não descubro as costas, para que o vento não se demore muito por ali. Vou girando as ancas, pernas altaneiras, sentada, no cume, até encontrar a direção prometida. O vento brinca comigo e rodopia também no bico dos meus seios, enquanto aperta com seu fôlego quente a minha nuca, dirigindo minha cabeça para o espaço, descobrindo uma mola sideral na pele dos meus olhos. Conheço do corpo do vento a sensação do bem, e sei que cheguei aqui carregada por ti, abrasada em tua garupa — ela acaricia o livro sob seu prazer. É mais para leste, um pouco para sul, e muda o tempo todo. Teresa encontra a fenda que diz sul, a metamórfica. Os ísquios tilintam e então, de pernas arqueadas, abre-se desmesurada, ursa, imensa, ouriça, ostra, toda ela um motor de mínimos ajustes, um ritmo arredio, desconjuntado, canalizando na vulva as diabólicas delícias das línguas do ar. Venta forte, tudo massageia meus lábios, vai quebrando o canto dentro de mim. Toco o sino das igrejas, aquela torre mínima onde moram meninas espertas, acidultantes, meninas que escrevem contra a guerra, meninas divertindo-se com os espólios de seu passado fruto violador, meninas que beijam a boca do vazio e não são detidas. Espátula de carne a enrijecer conforme o som e a pôr todo o corpo numa mesma viração. O vento entra, Teresa rodopia, uma mão ajeita o equilíbrio móvel da posição, a outra pousa em ti, elo do contágio. O vento afunila, cava com as mãos até o útero, conduzido por um prelúdio de temporal. Já relampeia fora, o céu boquiaberto, e é Teresa quem abre a goela com a cabeça jorrada para trás, já não usa nenhuma das mãos, estão em algum lugar de liberdade, no alto cume da montanha. Do cós da garganta vejo que é a voz com que amo. A voz dos indistintos, voz sem gente dentro, voz de pessoa que antigamente, no lugar do futuro, saberá voar. Estou no mar, o corpo todo é mar. Tu, encharcado, perdido, boia já longe dentro de mim. O mesmo mar é um lugar onde caberá nossa distância. É essa a voz que repete, remoça e remenda o amor. O vento nos trouxe, ao mesmo mar. Possuída, Teresa deita o livro debaixo da terra, ecoando ainda o silvo do cume de seu corpo, a montanha, no meio de suas pernas, na página em que a memória se revive aguardente, brasão sem dono, desatrelada lareira que aquece sem fazer latejar na retina da mulher que se senta em frente a ela, com livro nas mãos, dentro de si, dor nenhuma, nenhuma inquisição, homem ou dono nenhum. E aqui onde Teresa grita morará o mar. E o poema do mar ondula pelos ovários sopranos das lavas de Teresa. Tudo vertendo água — água que não cessa, jorro absoluto para nenhuma reprodução. Livro próprio, destino selado.