Brasa, série fotográfica de Gleeson Paulino, gentilmente cedida para a edição O Homem: Amarello 15 anos. Todos os direitos reservados.

Em casa, Dona Brasilina lhe entregou o prato de pastéis com couve, um pedaço de carne de bode seca, e saiu para pendurar as roupas. Eles não se falavam mais. Antonio ouvira dizer que ela tinha se engraçado com alguém e, certa vez, quando ele a chamou para lhe fazer carícias, ela negou o fogo, dizendo: “Um dia vou embora, vou com quem pode me dar uma vida melhor. A gente parece passarinho, Antonio, migrando de um lado pro outro”.

O coração de Antonio batia agoniado. Ele tinha vocação para a batina, gostava de orar e de servir às gentes, contar as histórias de Jesus, mas, com a morte do pai, teve que deixar os estudos de latim e assumir os negócios.

Perdeu tudo.

Foi assim que ele e Brasilina começaram a se mudar, de fazenda em fazenda, onde Antonio conseguia trabalho como mestre de primeiras letras.

Um dia, quando trabalhava numa fazenda perto de Santa Quitéria, Antonio montou o burro para ir à cidade e viu, sozinho, no meio da caatinga, um casebre quase encantado. Era vermelho, e tão bem cuidado que parecia saído de uma história. Na varanda, viu uma moça com uma flor branca no cabelo, de vestido amarelo, no meio de estátuas de santos e santas.

Ele parou o burro. Desacreditado, ficou contemplando.

Ela tinha nas mãos contas brilhantes como diamantes e as usava para completar as esculturas. As mais lindas que Antonio já tinha visto.

“O senhor tá perdido?”

Antonio ficou desconcertado e, como a moça lhe pegou no susto, disse que sim, que queria ir para Tamboril e tinha esquecido a direção. “O sol tá forte na cabeça”, explicou, e, levando o chapéu ao peito, disse: “Num me apresentei. Antonio Maciel”.

“Joana Imaginária” ela disse, e, de soslaio, mirou os grandes olhos verdes nos miúdos olhos negros dele. “Tamboril é pra lá.”

Antonio reparou que ela não tinha dois dos dentes da frente. Pôs de volta o chapéu na cabeça. Ia agradecer e ir embora, mas pensou que queria elogiar as figuras de argila.

“A senhora é a artista?”

“Sou. Vendo pra igreja, pras lojas, também pras casas. Quer levar uma?”

Joana apoiou a caixa de contas na mureta da varanda e foi virando as esculturas para Antonio ver.

“Eu bem que queria, Joana. Joana Imaginária. Nome bonito esse. É de batismo?”

“Não, é só porque eu imagino muito. Imagino todos os santos e vejo eles direitinho. Aí me chamaram de Imaginária e ficou.”

“Quanto é a Nossa Senhora?”

“A Aparecida? 200 réis.”

Joana pegou a estátua.

Brasilina até que podia gostar, mas ia querer saber de onde veio, quanto custou e por que comprou. Ele bem sabia que ela tava preocupada em ter uma vida mais confortável e que aquela santa ia ser para ela um cacareco que eles não precisavam ter. Ele até imaginou: já temos duas Nossas Senhoras e cê trouxe mais uma? E desse tamanho, ainda por cima?

As estátuas de Joana Imaginária eram do tamanho de crianças.

“Um dia eu vou comprar todas as estátuas da senhora, quando eu realizar meu sonho de construir mais igrejas no sertão. Infelizmente hoje num posso levar, não. Minha mulé não vai apreciar eu trazer um presente dessa grandeza.”

“Mas se é bonito, uai, não entendo… Ela num reza?” Interessada na resposta, Joana se sentou na muretinha, ao lado da caixa de contas, para ouvir Antonio.

“E como reza, mas reza pra ficar rica, pra ter outro homem.”

Ele se ajeitou em cima do burro.

“Ave Maria”, disse Joana, e fez o sinal da cruz.

Então o silêncio interviu. A artista levantou e começou a colocar as continhas de falso diamante na estátua de São João.

Antonio já podia esporear o burro, mas o animal parecia que queria ficar.

“E a senhora, reza?”

Quando Antonio se deu conta de que aquela era uma pergunta tola, pois é claro que Joana rezava, já tinha perguntado.

Ela não se ofendeu. Sorriu. Disse: “Até quando eu tô sonhando”.

Antonio pensou que se ela esculpisse a própria imagem, ele ia querer comprar uma.

“E marido, num tem?”

“Pra quê? Num tenho e nunca vou querer ter.”

O coração do cavaleiro acelerou. Fazia tempo que seu coração não fazia isso, de o deixar quente, transtornado.

“Vixe. Mulé valente.”

“E dá pra num ser, nesse vasto sertão? O senhor é professor?”

“Como você sabe?”

A bolsa, que o mestre-escola carregava cruzada no peito, estava aberta, os livros caindo para fora.

 “Eu num sei ler, você podia me ensinar.”

Antônio ficou sem ar. Tirou de novo o chapéu.

“Vai ser uma honra, dona Imaginária.”

“Eu te faço uma santa pra cada igreja que construir.”

“Eu te dou minha palavra: volto pra te ensinar a ler a Escritura.”

Com o acordo feito, se despediram.

O burro gemeu quando foi esporeado, e cavalgou o caminho que sabia de cor e salteado. Olhando o céu e os passarinhos, de cima do burrinho, Antonio cantava. No seu pensamento estava Imaginária e as estátuas brilhantes de Nossa Senhora Aparecida, de São Sebastião, de Cosme e Damião, e do Anjo Gabriel.