O brasileiro é, antes de tudo, um múltiplo
Não surpreende que, ao celebrar seus quinze anos de vida, a Amarello nos instigue a pensar na ideia de identidade.
Enquanto processos de formação de identidade duram uma vida toda, é justamente entre os doze e os dezoito anos que um indivíduo se depara com a grande tarefa de (começar a) descobrir quem é. Segundo a teoria do desenvolvimento psicossocial de Erik Erikson, psicólogo e psicanalista germano-americano, cada estágio da vida apresenta um dilema específico, que precisa ser elaborado para um crescimento saudável de personalidade em direção a uma vida plena. Na adolescência, a crise é do conflito entre identidade e confusão de papéis. Em seu livro O ciclo de vida completo, Eriskon argumenta que, nessa fase, a experimentação de papéis é essencial para que padrões básicos de identidade comecem a emergir — tipicamente a partir (1) da afirmação e rejeição seletiva das identificações de infância de um indivíduo; e (2) da forma como o processo social da época identifica os jovens — idealmente reconhecendo-os como pessoas que precisaram se tornar quem são e, sendo quem são, podem ser confiáveis”. A crise, então, é sobre integrar, de maneira minimamente coerente, as diversas expectativas e experimentações a uma concepção de “eu” que minimiza a sensação de confusão e insegurança em relação a um lugar no mundo (e os processos sociais têm papel gigante nisso). Nesse sentido, um senso de identidade mais sólido ajuda o indivíduo a encarar os desafios da vida adulta com mais segurança.
Poderíamos falar aqui da identidade da própria revista, mas, apesar dos seus quinze anos adolescentes, os tempos das revistas parecem ser diferentes dos tempos dos humanos. Uma publicação que nasceu como mudança, passou por renascimento e discorreu, no caminho, sobre futuros ancestrais e imaginação radical já parece ter construído um senso de identidade suficientemente coerente para seguir adiante, mais amadurecida. Um breve passeio pelas cinquenta edições revela a riqueza de temas que abarcam transformações, territórios, subjetividades, heranças e — claro — cultura.
Para uma revista de “cultura em brasileiro”, o convite para esse diálogo sobre identidade gira, então, em torno de uma ideia de identidade nacional brasileira. Nesse contexto, talvez a crise da confusão de papéis nos ajude a compreender melhor essas nuances. Estamos, brasileiros, confusos?
Vamos começar pela ideia de identidade nacional brasileira, uma expressão que já carrega múltiplas camadas e diversos significados. A própria noção de “nação brasileira” traz em si uma contradição latente, uma incompatibilidade intrínseca — um problema de sufixo, como explicou Antônio Houaiss a Leilane Neubarth: “O sufixo de nação é ‘ano’ ou ‘ês’. Vamos lá: americano, australiano, italiano, africano, mexicano… Ou francês, português, inglês, japonês. O sufixo ‘eiro’ é de profissão: padeiro, carpinteiro, jardineiro, pedreiro”. Neubarth relata esse diálogo eu seu artigo Brasiliana, e arremata: “Milhões ao longo dos séculos usando o Brasil como profissão em vez de trabalhar para ele, por ele, pelo nosso povo, pela nossa nação”.
Para (começar a) elaborar a crise da confusão de papéis, um primeiro passo talvez seja abraçar esse sentimento de nação. Convocar palavras germinantes, como diria Nego Bispo em A terra dar, a terra quer: “Vamos pegar as palavras do inimigo que estão potentes e vamos enfraquecê-las. E vamos pegar as nossas palavras que estão enfraquecidas e vamos potencializá-las”. Sejamos, pois, brasilianos.
Pensando ainda na ideia de identidade nacional, O caráter nacional brasileiro, de Dante Moreira Leite, faz um profundo apanhado das raízes deste, com uma análise densa que põe em diálogo os campos da psicologia, antropologia, sociologia e literatura. Em sua epígrafe, Leite já convoca Guimarães Rosa — “Existir é homem humano” —, remetendo à complexidade da tarefa identitária. O que pode dar conta da humanidade? E é sobre isso que a obra discorre, sobre as contradições e a precariedade de teorias e ideologias de caráter nacional que acabam por revelar, explícita ou disfarçadamente, formas diversas de preconceito. O livro percorre historicamente as várias fases das ideologias: a fase colonial, desde a carta de Pero Vaz de Caminha; o romantismo do século XIX, com a independência e a formação de uma imagem positiva do brasileiro; as ciências sociais e a imagem pessimista do brasileiro; e o desenvolvimento econômico da década de 1950 e a superação da ideologia do caráter nacional brasileiro. “As ideologias do caráter nacional brasileiro frequentemente representam, portanto, não uma autêntica tomada de consciência de um povo, mas apenas um obstáculo no processo pelo qual uma nação surge entre as outras, ou pelo qual um povo livre surge na história”, defende Leite.
Essa provocação nos faz repensar a noção de “uma” identidade. Há uma coerência mínima que nos dê segurança para encarar os desafios da vida? Lembro-me de um artigo de Contardo Calligaris (A coerência é um valor moral?) em que ele invoca justamente o dilema — em oposição à coerência — como forma de lidar com a realidade e com os outros: “Para o indivíduo moral, que se orienta (e desorienta) por dilemas, a coerência não é uma virtude, ao contrário, é uma fuga (um tanto covarde) da complexidade concreta. Oscar Wilde, que é um grande fustigador de nossas falsas certezas morais, disse que ‘a coerência é o último refúgio de quem tem pouca fantasia’ e, eu acrescentaria, de quem tem pouca coragem”. Uma boa noção de identidade parece abranger uma vastidão de caminhos que, ainda que aparentemente não congruentes, nos oferecem um senso de pertencimento e orientação no mundo. Mas para isso será preciso imaginação e coragem? Como escreveu Walt Whitman: “Eu me contradigo? / Pois bem, então me contradigo / (Eu sou vasto, contenho multidões)”.
Quando levamos a crise e o dilema para o âmbito cultural, podemos pensar em como uma identidade nacional brasileiraiana conversa com a cultura popular. Lourdes Macena, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará e diretora do Miraira — Laboratório de Práticas Culturais Tradicionais, nos lembra das diversidades da(s) cultura(s) popular(es), da importância de se falar dos territórios e de reconhecer e valorizar o que foi deixado invisível. Em uma de suas aulas, ela argumenta que é preciso olhar de forma mais organizada e comprometida para o saber tradicional, para as identidades e para os territórios para além das capitais e das sedes, sempre pensando em “estabelecer a marca de um povo plural e singular ao mesmo tempo”. A importância do plural, como afirma Maria Laura Cavalcanti em seu artigo Duas ou três coisas sobre folclore e cultura popular: “No singular, ‘cultura popular’ sugere uma enganadora homogeneidade”. Esta conclui, ainda:
“Uma cultura é sempre do mundo e o melhor uso da expressão ‘cultura popular’ corresponde ao desejo de transpassar fronteiras, de estabelecer comunicações. Em suas melhores expressões, esse esforço busca apreender diferenças, não para enrijecer limites (porque esse enrijecimento pode atingir formas virulentas, como ocorre nos nacionalismos exacerbados), mas para ampliar nosso leque de possibilidades. Valorizar a cultura popular como aquela parte da produção cultural que seria a mais autenticamente nossa traz algumas armadilhas indesejadas. Por quê? Porque esse ‘nosso’ é muito heterogêneo e torna-se ‘nosso’ por caminhos muito diferentes. Tipificar a cultura, opor tipos de cultura rigidamente diferenciados é falsear um universo sempre mais rico, porque heterogêneo e dinâmico. (…) Tornar alguma coisa o penhor da identidade de uma nação é uma sobrecarga imensa e o melhor a fazer é afirmar a pluralidade interna e externa aos vários segmentos da cultura. Todos eles são ‘nossos’. Talvez possamos fazer dessas diferenças um estímulo. Um ponto de apoio de reconhecimentos e solidariedades a favorecer a inventividade de todas as nossas tradições”.
E aqui, retomando Erikson e a importância dos reconhecimentos dos processos sociais, talvez a confusão de papéis possa ser melhor elaborada a partir desse plural de identidades. Ou, ainda, a partir da noção de confluências de Nego Bispo:
“Não tenho dúvida de que a confluência é a energia que está nos movendo para o compartilhamento, para o reconhecimento, para o respeito. Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio, ao contrário, ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluencia, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente — a gente rende. A confluência é uma força que rende, que aumenta, que amplia”.