Brasa, série fotográfica de Gleeson Paulino, gentilmente cedida para a edição O Homem: Amarello 15 anos. Todos os direitos reservados.

A poesia é fundadora. Euclides da Cunha era poeta.

Em sua edição comemorativa de dez anos, a revista Amarello trouxe aos leitores um dossiê temático voltado ao tema da primeira das três partes d’Os Sertões, A terra. Agora, os quinze anos da revista, são comemorados com ensaios que permeiam o tema da segunda parte, O homem.

Euclides da Cunha era poeta. Essa afirmação não toca apenas a considerável obra em verso do autor d’Os Sertões, em que o cuidado métrico e o rico vocabulário, tão próprios do parnasianismo de então, embalam o amor à natureza, bem como o louvor ao progresso científico e à liberdade. A erudição de Euclides da Cunha o permitiu confeccionar um livro que era, em suas três partes, ensaio geológico, ensaio antropológico e narrativa histórica, respectivamente; no entanto, quer leia-se a primeira, a segunda ou a terceira parte, a linguagem, por precisa que seja no manejo do jargão científico, prorrompe irrefreável em poesia. Qual é o significado dessa dominância do poético na obra de Euclides da Cunha?

“Para o pensamento evolucionista, o negro africano e o indígena americano se encontravam no mesmo estágio evolutivo do grego, do celta ou do germânico de milênios atrás”

A linguagem que vemos na primeira sessão da obra, A terra, defende Leopoldo M. Bernucci, estudioso da obra de Euclides, fornece os ritmos e elementos essenciais para o que se encontrará nas sessões seguintes. A terra é, portanto, contexto para o desenvolvimento do “homem” tanto quanto palco móvel e dinâmico para a “luta”. Na terceira parte, já sabemos, impera o caráter narrativo e — por que não? — épico do livro. Já a segunda parte, O homem, nos faz deparar com um problema: ali vemos o Euclides antropólogo, encharcado de teorias deterministas, valendo-se de ideias sobre raças “superiores” e “inferiores”, cujos caracteres intelectuais e morais parecem tão rígidos quanto as monumentais formações rochosas tão belamente descritas na primeira parte. É inevitável o incômodo diante de ideias trabalhosamente combatidas ao longo do século XX, cujos resíduos seguem perturbadores no presente, a ponto de carregarem discussões raciais de tensão e amargor. Não seria esse um passado teórico-literário que queremos (ou deveríamos querer) expurgar? Deveria Euclides da Cunha, afinal, entrar pro rol de gigantes literários cancelados hoje?

Talvez a erudição científica de Euclides da Cunha nos desoriente a ver na segunda parte d’Os Sertões um simples endosso arrogante de ideias racistas que punham o homem branco no topo da humanidade, tendo indígenas e africanos (e suas diversas mesclas) no lugar de elementos retrógrados, perigosos à formidável civilização que o Brasil poderia ser. É um Brasil bastante miscigenado em raças e tradições — e miserável, em termos materiais — que Euclides encontra nas campanhas sertanejas e transpõe para sua literatura. A perplexidade europeia diante das outras “raças” humanas já havia séculos dava origem a uma diversidade de teorias extravagantes sobre a origem e o desenvolvimento da humanidade, o evolucionismo sendo, na época de Euclides, a perspectiva em voga. De uma origem próxima ao animal, a humanidade percorreria uma longa jornada até o aperfeiçoamento moral e intelectual, indo da relação mais imediata com os dados brutos da realidade material às abstrações que mais e mais libertam o ser humano das contingências imediatas. As diferentes raças se encontravam, no entanto, em pontos diferentes dessa jornada. No polo mais desenvolvido, o europeu; no mais primitivo, o africano e o indígena. Diante de um país carregado de indivíduos pertencentes a raças diversas desfilando suas tradições, o homem formado nas letras e ciências europeias não poderia senão, por um lado, espantar-se com os perigos que tais descontinuidades representavam à civilização que tanto desejava edificar e, por outro, maravilhar-se com o farto material científico que essa diversidade fornecia. Se etnólogos europeus embrenhavam-se nas matas africanas para recolher dados preciosos sobre “a infância da humanidade”, o que não faria o intelectual brasileiro tendo o material em sua casa?

É ocioso entrar na ladainha de que Euclides da Cunha estava apenas reproduzindo o pensamento de sua época com todos os seus preconceitos, mas é bom lembrar que ele não estava sozinho em suas ideias. Talvez o maior expoente desse pensamento, contemporâneo de nosso autor, tenha sido o médico e antropólogo baiano Raimundo Nina Rodrigues, abolicionista de crença férrea na inferioridade negra, que legou estudos minuciosos sobre as culturas, religiões, línguas e tradições africanas na Bahia, revisitados periodicamente por estudiosos e ativistas brancos e negros que rejeitam seu racismo, mas acolhem seus trabalhos etnográficos. Contradição? Não exatamente.

Para o pensamento evolucionista, o negro africano e o indígena americano se encontravam no mesmo estágio evolutivo do grego, do celta ou do germânico de milênios atrás. Os ritos praticados nas aldeias africanas e americanas e nos terreiros africanistas brasileiros proviam correspondentes precisos da antiga população que viria a dar origem a Homero, Hesíodo, aos trágicos e, finalmente, a Platão e Aristóteles. Que privilégio, para o homem de ciência e de letras brasileiro, conhecer, por analogia, as sementes da civilização ocidental que buscava reproduzir no Brasil!

Com Nina Rodrigues, ficamos nesse ponto. Com Euclides da Cunha, vamos além. Como? É aí que, no autor fluminense, o poeta cavalga o homem de ciência e torna seu O homem algo além de um documento do lamentável racismo de uma época passada. Comece a ler a segunda parte d’Os sertões; ali estão as teorias sobre a hierarquia das raças, os danos causados pela mestiçagem (particularmente para as raças ditas superiores) e o perigo que esta oferecia para a civilização. Siga lendo a segunda parte d’Os sertões, e a exposição teórica dá lugar à descrição etnográfica — os hábitos, as tradições dos sertanejos, sua complexa relação com o rude meio em que vive, são mais que detalhados. Vemos o frio cientista que falara até então entusiasmar-se diante da riqueza da realidade à sua frente. Vemos, em suas avaliações dos cultos e das formas da religiosidade popular, o erudito reconhecer fortes traços das diversas formas, primitivas e heréticas, que o cristianismo tomou na Europa ao longo de sua evolução, juntamente com rituais iorubanos e bantos ou elementos do islamismo africano. Em suma, séculos de história e léguas de geografia se condensam na impressionante religiosidade sertaneja que o letrado Euclides tem diante de si — uma condensação desse tipo se dá no solo da imaginação mais que no da análise racional, e sua expressão é privilégio do poeta, mais que do cientista.

“Hoje, mais que mestiço, o brasileiro pode se mostrar plural, e sua história ser lida por lentes ameríndias, africanas, europeias”

Vai nesse caminho, em sua obra De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira, José Guilherme Merquior, ao ver n’Os sertões uma retratação — retratação de Euclides pelo local a que relegara o sertanejo como elemento retrógrado, reacionário, entrave ao progresso republicano. As contradições só aparentes de Nina Rodrigues (seu racismo com sua dedicação ao estudo das culturas negras) se tornam contradições de fato na obra de Euclides, e é aí que vemos sua grandeza. Diz José Guilherme Merquior: “Essas contradições, por mais que turvem a coerência da visão científica de Euclides, depõem em favor de sua honestidade intelectual”. E depõem em favor, também, de seu fervor lírico. Bernucci, no estudo introdutório à sua edição crítica d’Os Sertões, encontra tais contradições no próprio estilo de Euclides, carregado de elementos barrocos tão condenados pelo naturalismo de sua época.

Neste momento, podemos perguntar: quem é o homem da obra de Euclides? O homem que escreve parece ser aquele homem branco, epítome da civilização, que se queria fazer vicejar nos trópicos; o homem que é escrito é um misto retrógrado e insustentável das três raças (sim, pois Euclides vê no sertanejo também elementos degenerados do português). Mas que homem emerge hoje? É um homem com o qual possamos nos relacionar?

Lemos o seguinte, sobre as manifestações religiosas sertanejas: “Não seria difícil caracterizá-las como uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização”. Passagens como essa parecem como que um negativo daquilo que viria a ser positivado na obra de Gilberto Freyre. Racialmente e culturalmente, o brasileiro é um homem mestiço e encontra sua natureza exatamente na síntese dessas raças e tradições. A positividade que Freyre via na mestiçagem talvez tenha uma gênese mitopoética no poder barroco da linguagem de Euclides, ainda que, no mesmo Euclides, o homem de ciência teimasse em “fazer o dever de casa” e ver na mestiçagem uma degeneração.

Hoje, as teses favoráveis à mestiçagem do próprio Gilberto Freyre por vezes são vistas como reacionárias e até racistas. O mais que bem-vindo, o necessário crescimento — em número e vigor — de intelectuais negros e indígenas vem reivindicando perspectivas históricas e epistemológicas próprias a cada um desses grupos, cuja destinação é algo mais que ser absorvido numa mestiçagem teorizada e celebrada por autores de extração — e, acima de tudo, formação — europeia. Hoje, mais que mestiço, o brasileiro pode se mostrar plural, e sua história ser lida por lentes ameríndias, africanas, europeias… Talvez hoje, mais que antes, encontremos uma produção intelectual brasileira que possa assimilar mais vigorosamente as contradições que vemos na poesia da linguagem de Euclides da Cunha.