Brasa, série fotográfica de Gleeson Paulino, gentilmente cedida para a edição O Homem: Amarello 15 anos. Todos os direitos reservados.

Você fez 13 anos nesse mês de setembro, dia 23, junto com a chegada da primavera. Na religião do seu pai, já pode ser considerado um homem. Na minha, ainda falta um pouquinho. O fato é que você tem nós dois bem instalados dentro de você, então pode oscilar entre ser um homem e um menino. Bom, pensando bem, talvez ser adulto implique assumir que essas posições são oscilantes e coexistem. Nunca deixamos nossa meninice de lado.

“Espero que, quando se tornar homem, saiba que ser homem é diferente de ser macho”

Explico: no futebol, você joga como homem adulto, passa a bola, grita alto quando faz gol, bate no peito. Contemplo em silêncio, já que pouco entendo do jogo. Mas, quando o ponto é seu, pareço uma menina apaixonada contando para a arquibancada que aquele atacante é meu filho. Seu pai, nessas horas, também reencontra o menino que foi e, por vezes, reclama com o juiz, tudo que ele sempre achou ridículo fazer — mas o amor é assim. Todas as cartas de amor são ridículas e, onde esse sentimento está, ficamos assim, ridículos. Já dizia o poeta. Você há de se apaixonar muitas e muitas vezes na vida e vai entender isso.

Aliás, uma amiga me mostrou o Ethan Hawke, numa entrevista, declarando que podemos viver sem poesia e arte até que a gente se apaixone ou perca alguém que amamos. Uma fala inesquecível. Seu avô dizia que quem anda com um poema no bolso nunca está só. Por isso, decorei tantos para embelezar a minha rotina. Poemas colocam purpurina numa cena, abuse deles.

Freud dizia, em O mal-estar na civilização, que nunca nos encontramos tão indefesos como quando amamos. Eu sempre concordei com ele, mas, depois que te conheci, assino embaixo. Suas dores são minhas; eu as sinto na pele mais do que as minhas próprias, mas isso não significa que você estará protegido delas. Muito pelo contrário. Elas são parte da nossa existência e nos ensinam muito. Abrir o peito para senti-las é um ato de coragem, assim como saber a hora de deixá-las, pois passar a vida olhando pelo retrovisor é viver de tempos mortos, como dizia Simone de Beauvoir.

Aliás, seu avô também costumava dizer algo parecido sobre o passado: é preciso tratar algumas coisas com uma distância respeitosa — a natureza, as drogas e o passado. Essas forças poderiam nos engolir, pois são bem maiores que a gente. Eu já saí de muitas enrascadas por causa dessa frase.

Freud dizia que a felicidade é uma manifestação episódica; ou seja, temos momentos felizes, mas não o tempo todo. Acho importante você ter isso em mente para suportar os pedaços mornos da vida. São muitos, e, se você tiver sorte, contemple-os. Quando há algo dando errado na vida da gente, temos muita saudade deles; isso eu aprendi.

“Preste atenção nas frases das canções. A música é sempre a companheira ideal”

Nos momentos mais difíceis, saiba que o trabalho ajuda demais a nos dar contorno, um lugar seguro que nos prende na realidade. A rotina, da qual a gente tanto se queixa, serve muitas vezes como uma moldura que nos ajuda a não despencar. Coloque os pés no chão e dê o primeiro passo. Produzir dá a maior satisfação, e, se pudermos escolher com o que trabalhar, somos privilegiados. Encontre sua paixão e conhecerá o prazer no ofício. Não se esqueça jamais de que poder escolher um trabalho é uma dádiva em um mundo onde muitos trabalham para o pão de cada dia. Valorize o aprendizado que nós pudemos te oferecer; aprender é uma forma de ser livre. Use bem as asas que te demos.

Espero que, quando se tornar homem, saiba que ser homem é diferente de ser macho. E isso significa que não precisa viver tentando mostrar sua força e insubordinação. Sua masculinidade vira gaiola se você deixar. Em Mudar: método,Édouard Louis escreveu um lindo trecho sobre isso. Homem chora, sim; pode ser sensível, sem medo. Brinca do que quiser, usa a cor que quiser, ouve a música que gostar. Como diz a autora Chimamanda Ngozi Adichie, “O problema da questão de gênero é que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos”. Ninguém tem o direito de prescrever como você deve ser, assim como você não tem o mesmo direito na vida de nenhuma pessoa.

Preste atenção nas frases das canções. A música é sempre a companheira ideal. Dance. Mexa seu corpo e escute a música vibrar.  Ele é seu, filho. Já morou em mim, mas hoje é onde você mora. Cuide bem desse lugar, ele é sagrado. Você é livre para usá-lo. Mas não esqueça que devemos tratar o corpo do outro com o mesmo respeito. E que, dentro dele, mora alguém, e, quando o ferimos, estamos deixando marcas numa alma. Invadi-lo sem permissão é esvaziar alguém. Deixa buracos na alma.

A verdade é que há algo difícil de te dizer, mas de que não posso me abster. Não são todos os homens, filho, mas é sempre um homem. O que quero dizer com isso é que há algo de muita responsabilidade em ser um homem. Isso não tem a ver com sexualidade — você vai usá-la da forma que quiser, eu não tenho nada com isso —, mas com o fato de que há toda uma sociedade que apoia certos comportamentos: os tais chamados machistas (termo que eu vivo usando em casa e que você se irrita), que oprimem as mulheres. Escrevo isso no meu lugar de fala, de quem já se viu silenciada, oprimida e diminuída por olhares masculinos. Esteja sempre alerta.

Eu adoro e sei de cor um texto que se chama O homem lúcido, que é um ensaio sobre a lucidez. Um texto caldaico, de autor desconhecido, que diz que o homem lúcido sabe que ele é o equilibrista da corda bamba da existência, que a vida é uma carga tamanha de acontecimentos que nunca devemos nos entusiasmar com ela. Nele, há uma ideia de que a lucidez está ligada a optar pela vida, saber ver beleza em tudo e nunca temer a morte. Termina com um pensamento: a justa lei máxima da natureza é que a quantidade de acontecimentos bons seja equivalente à quantidade de acontecimentos ruins na vida de um homem, mas aquele que opta por procurar pela beleza, ainda que nos infortúnios, é agraciado por mais acontecimentos favoráveis. Se você quiser ver a cena do Domingos de Oliveira lendo esse texto ao final do filme Separações, ela está no seu amado YouTube. Me arrepia a cada vez que assisto. Acho que não há nada mais poderoso nesta vida, meu filho, do que a lucidez. Cuide da sua. E saiba que, embora solitária, é um presente; é como enxergar a realidade com olhos de raio x. Bem mais legal que seus óculos de metaverso, vai por mim.

Aliás, você sabia que, se fechar os olhos, tem seu próprio metaverso? Experimente. Podemos montar cenas incríveis, ter encontros amorosos, matar saudades de pessoas que já se foram. Funciona sem wi-fi. Chama-se fantasia. Dá um prazer enorme. Quando eu não estiver mais aqui, é lá que a gente vai se encontrar.

Ainda sobre se perder: seu pai não faz nada sem Waze. Ajuda bastante, corta caminhos. Mas, de vez em quando, experimente se perder pela cidade, tentar vivê-la de fora para dentro, deixar-se distrair. Quando morei fora, me perdia quase todos os dias, tanto que tenho o mapa da cidade até hoje na minha mente, vinte anos depois. E é lá que passeio no metaverso dos meus olhos fechados, quando tenho saudades da juventude. Se entregue para a calçada, sem saber aonde ir, ouvindo uma boa trilha sonora, e se deixe ser levado pelo seu próprio passo. Pensando bem, filho, crescer é isso, ser levado pela força do nosso caminhar. A força dos meus me trouxe até você, e eu já tenho muito orgulho desse homem que meu ventre preparou para o mundo. E temos muito tempo ainda. Espero que a justa lei máxima da natureza me ofereça a cortesia que oferece aos homens lúcidos.

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Nota: O texto caldaico mencionado é do século VI a.C. e segue assim:

“O homem lúcido sabe que a vida é uma carga tamanha de acontecimentos e emoções que nunca se entusiasma com ela, assim como não teme a morte. O homem lúcido sabe que viver e morrer são o mesmo em matéria de valor, posto que a Vida contém tantos sofrimentos que a sua cessação não pode ser considerada um mal.

O homem lúcido sabe que é o equilibrista na corda bamba da existência. Sabe que, por opção ou acidente, é possível cair no abismo, a qualquer momento, interrompendo a sessão do circo.

Pode também o homem lúcido optar pela Vida. Aí então, ele esgotará todas as suas possibilidades. Passeará por seu campo aberto e por suas vielas floridas. Saberá ver a beleza em tudo. Terá amantes, amigos, ideais. Urdirá planos e os realizará. Resistirá aos infortúnios e até às doenças. E, se atingido por algum desses emissários, saberá suportá-los com coragem e mansidão.

Morrerá o homem lúcido de causas naturais e em idade avançada, cercado por filhos e netos que seguirão sua magnífica aventura. Pairará então, sobre sua memória uma aura de bondade. Dir-se-á: aquele amou muito e fez bem às pessoas.

A justa lei máxima da natureza obriga que a quantidade de acontecimentos maus na vida de um homem iguale-se sempre à quantidade de acontecimentos favoráveis.

O homem lúcido que optou pela Vida, com o consentimento dos Deuses, tem o poder magno de alterar essa lei. Na sua vida, os acontecimentos favoráveis estarão sempre em maioria.

Esta é uma cortesia que a natureza faz com os homens lúcidos.”