Brasa, série fotográfica de Gleeson Paulino, gentilmente cedida para a edição O Homem: Amarello 15 anos. Todos os direitos reservados.
#51O Homem: Amarello 15 anosSociedade

O homem — a que será que se destina?

A construção do homem brasileiro é um processo de transformação contínua. Ele surge dos encontros e desencontros, das narrativas sobrepostas, da fusão entre as matas e a urbanidade, dos ecos das tradições ancestrais e do impacto das mudanças sociais. Se a modernidade ocidental tenta nos propor uma identidade única e homogênea, o Brasil — com sua diversidade e multiplicidade cultural — revela uma narrativa de identidade plural e em constante movimento, que desafia e subverte qualquer tentativa de aprisionamento em um molde fixo.

“Na resistência dos povos africanos e indígenas, o homem não é separado da natureza ou do divino”

O “homem” brasileiro não pode ser visto exclusivamente através da lente biológica ou do gênero, e nem pode ser capturado em um conceito único. Ele é, antes de tudo, uma representação social que abarca tanto o feminino quanto o masculino, o sagrado e o profano, o indígena, o negro e o branco, e tantos outros elementos que conflitam entre si. A identidade nacional brasileira é uma teia de fios desiguais, nascida do violento encontro entre diferentes civilizações e culturas, forjada em séculos de opressão, incidências e sincretismos. Como escreveu Euclides da Cunha em Os sertões, ao descrever a luta dos sertanejos em Canudos, somos uma “civilização em gestação”, inacabada e, talvez, sempre inacabável.

Essa “inacababilidade”, de certa forma, pode ser lida com uma das essências do “ser nacional brasileiro”. Isto numa leitura de certa forma didática e homogeneizante, uma vez que é importante compreender que não há uma única identidade em um país continental como o Brasil. Em uma terra de disputas, em que o sangue, as tradições e os valores de diversos povos se mesclam, o homem brasileiro é fruto de uma luta pela sobrevivência, de uma espiritualidade resiliente e de uma identidade que se forma tanto pela assimilação quanto pela rejeição das influências externas. Nesse caldeirão de forças e contradições, a pergunta que permanece é: o que significa ser um sujeito social, um “homem” brasileiro, nesse mosaico que é o Brasil?

A história da formação do Brasil começa pela violência, marcada pelo colonialismo que impôs uma ordem social hierárquica e racista. Os colonizadores trouxeram consigo um modelo europeu de masculinidade e poder, no qual ser “homem” significava ser dominante, ser dono e estar acima dos outros. Mas a tentativa de impor essa visão linear esbarra nas estruturas culturais que o colonizador não conseguiu apagar completamente: a espiritualidade africana, a cosmovisão indígena, o respeito pela natureza e a ideia de comunidade.

A identidade, seja ela individual ou coletiva, não é um dado imutável, mas sim um processo contínuo de construção e reconstrução. O homem brasileiro, assim como qualquer outro sujeito histórico, é moldado pelas relações sociais, pelas instituições, pelas experiências vividas e pelas narrativas que circulam em sua sociedade.

Na identidade do homem brasileiro, essas influências convivem com uma sociedade que, desde o início, impôs um sistema patriarcal e racista. Os colonizadores exploraram o indígena, escravizaram o negro e tentaram exterminar todas as formas de resistência. Mas mesmo sob o peso do jugo colonial, essas populações resistiram. E, ao resistirem, mantiveram vivos elementos fundamentais de suas culturas, que passariam a fazer parte, de forma inevitável, da identidade nacional brasileira.

A noção de masculinidade, por exemplo, é um constructo social que varia ao longo do tempo e entre diferentes culturas. No Brasil, a masculinidade hegemônica, muitas vezes associada à força física, à heterossexualidade e à repressão das emoções, tem sido desafiada por novas formas de expressão de gênero. A luta dos homens negros por reconhecimento e respeito, assim como a crescente visibilidade da comunidade LGBTQIA+, têm contribuído para a desconstrução de estereótipos e a construção de masculinidades mais diversas e inclusivas. A figura do “homem” brasileiro carrega, portanto, a dualidade do colonizador e do colonizado, do opressor e do oprimido. Ele é, ao mesmo tempo, fruto de uma violência histórica e da resiliência daqueles que resistiram a essa violência. A influência do catolicismo ibérico é visível, mas o que se percebe nas práticas e nos rituais do cotidiano é um sincretismo que incorpora o candomblé, a umbanda, a pajelança e tantas outras tradições, revelando a face espiritual desse homem — e aqui não estamos falando do ser biológico, estamos falando do ser humano carregado de brasilidade — plural e híbrido.

O que é, afinal, a “alma” do homem brasileiro? Se olharmos para a espiritualidade que permeia o país, podemos ver um retrato evidente de como esse homem se define para além do material e do visível. Na resistência dos povos africanos e indígenas, surgiram religiões e práticas que representam uma forma de identidade espiritual e cultural única, em que o homem não é separado da natureza ou do divino. Nessa visão de mundo, o homem brasileiro é um ser conectado, que pertence a uma comunidade espiritual e material. Ele é, ao mesmo tempo, um indivíduo e um coletivo. Essa espiritualidade integradora é uma resposta direta à fragmentação imposta pelo mundo ocidental. Ao contrário da visão eurocêntrica, que valoriza o individualismo e a separação entre corpo e espírito, a espiritualidade afro-brasileira e indígena oferece um caminho para a totalidade entre ser-estar e a harmonia. Essa busca por totalidade é, também, uma busca por identidade. O homem brasileiro não pode ser compreendido apenas como um indivíduo isolado, mas como parte de uma coletividade maior que envolve ancestrais, natureza, espíritos e forças invisíveis. Ele é, em suma, um ser em comunhão, cujas escolhas e ações reverberam em um contexto mais amplo e mais antigo do que ele próprio.

A espiritualidade, em suas diversas manifestações, desempenha um papel fundamental na construção da identidade. As religiões afro-brasileiras, por exemplo, com suas ricas cosmologias e práticas ritualísticas, oferecem um rico repertório simbólico para a compreensão da experiência humana. A figura do orixá, por exemplo, que encarna tanto o masculino quanto o feminino, desafia as noções binárias de gênero e abre espaço para uma compreensão mais fluida da sexualidade. A espiritualidade indígena originária, por sua vez, nos ensina a importância da conexão com a natureza e com os ancestrais. A visão de mundo indígena, que valoriza a coletividade e a interdependência entre todos os seres, oferece uma alternativa ao individualismo e ao consumismo que caracterizam a sociedade contemporânea.

No caso dos homens negros, as relações familiares são marcadas por uma longa história de opressão e violência. A escravidão, por exemplo, desestruturou famílias negras e impediu a formação de laços afetivos estáveis. A luta pela reconstrução das famílias negras é, portanto, uma luta pela reconstrução da própria identidade. A família é o primeiro núcleo social em que o indivíduo se insere e desempenha papel crucial na formação de sua identidade. As relações familiares, marcadas por hierarquias, afetos e conflitos, moldam nossas percepções de nós mesmos e do mundo.

No Brasil, a identidade de gênero e a ideia universal de homem também foi moldada por essas camadas históricas e culturais. A masculinidade brasileira, por muito tempo, se formou em torno do estereótipo do “machão” — o homem viril, forte e insensível, que não demonstra fraquezas. Esse arquétipo foi glorificado como uma tentativa de afirmar uma identidade nacional robusta, em oposição à fragilidade do “homem colonizado”. Contudo, o Brasil é muito mais do que esse estereótipo. Ele é o país das mães solos, dos homens que cozinham, dos pais que dançam e das crianças criadas por avós e tias em uma estrutura familiar extensa e comunitária.

A sociedade brasileira contemporânea passa, hoje, por um questionamento profundo sobre esses papéis de gênero. As novas gerações, influenciadas por movimentos globais de igualdade e diversidade, questionam o valor desse modelo tradicional de masculinidade e buscam alternativas mais inclusivas e fluidas. O homem brasileiro, assim como a mulher brasileira, é confrontado com a necessidade de redefinir-se e adaptar-se a um novo mundo, no qual gênero e identidade não são mais limitados a categorias rígidas.

Se pensamos no homem como um sujeito social, precisamos reconhecer o papel das influências históricas, culturais e políticas que moldaram essa figura ao longo dos séculos. Ele é o homem que foi escravizado, mas também o que lutou pela abolição. Ele é o homem que sofreu o apagamento de sua cultura, mas que também a resgatou e a reinventou. Ele é o homem das favelas, dos quilombos, das aldeias, dos centros urbanos e das margens.

Para o homem brasileiro, a identidade nacional é um projeto inacabado, uma tarefa sempre em andamento. Ela não está nos monumentos ou nos discursos oficiais, mas nas vidas reais, nas lutas cotidianas, nos gestos de solidariedade e de resistência. Ela está nas rodas de samba, nas celebrações do candomblé, nas danças indígenas e nas festas populares que transformam as ruas em templos e celebram a força de um povo que nunca foi apenas um, mas que, por isso mesmo, é único.

A história da construção do homem brasileiro é, assim, uma narrativa de resistência e reinvenção. Ele é fruto de uma pluralidade de influências que, ao invés de se diluírem em uma identidade única, se entrelaçam para criar uma tapeçaria rica e complexa.