O ator Gabriel Leone em cena de Deba, curta-metragem de Bárbara Magri.
Cinema

Deba e a natureza cortante do desejo

Deba, curta-metragem de Bárbara Magri com Gabriel Leone e Carla Salle, investiga a natureza cortante das relações humanas.

A Praia dos Amores, na Barra da Tijuca, é o palco de uma dança misteriosa no curta-metragem Deba, dirigido por Bárbara Magri. Com atuações de Carla Salle e Gabriel Leone — que também estrela a minissérie Senna, disponível na Netflix desde o final de novembro —, o filme é um forte representante de uma nova geração do cinema brasileiro.

Mesmo que com o cenário natural o circundando com toda a sua glória, o personagem de Leone, que carrega um olhar desanimado firme, não parece muito afeito à vida no cais. Há um distanciamento ali presente, ainda que jamais dito. Um relance de vida, seja essa qual for, só se apresenta quando ele afia sua faca Deba, aquela que é cinematograficamente pontuda e afiada, para cortar um peixe-vermelho. Por um buraco na escama do animal, ele vislumbra o desejo. Mas desejo de quê? De fuga? De não ser sozinho? De amar carnalmente? Um desejo incontornável de amar da forma mais simples?

Quando a personagem de Carla Salle aparece, transbordando inquietude, Leone está prestes a adentrar um mundo à parte, alheio às suas cercanias. Cada qual à sua maneira, ambos estão em busca da mesma coisa: uma outra realidade. E, quando sua inserção nos abismos do universo interno é interrompida, tendo que ir nos fundos pegar um peixe dourado para a cliente, é ela quem se entrega ao peixe que tem a cor da paixão. Entre o cheiro forte da vida no cais e a flexibilidade das ondas e da paisagem onírica, resplandecem as faíscas do encontro direto e indireto entre os dois. 

As águas ora calmas ora revoltas escondem segredos que parecem se enredar entre os personagens e o cenário. Envolto em poesia e inquietude, o enredo simples de narrativa forte explora os laços invisíveis que nos conectam ao desconhecido — tanto em relação às pessoas quanto a nós mesmos. 

E poucas falas são necessárias para dar a Deba um tom próprio, pois a voz de Dorival Caymmi, que começa a ressoar em determinado momento da produção, dispensa largas explicações ou trocas verbais entre os personagens. Mas o que torna a escolha da trilha tão interessante é que, muito embora saibamos onde estamos diante do timbre conhecido, aquele não é o Caymmi d’O Samba da Minha Terra ou o de Morena do Mar — é o de Noite de Temporal, que canta um pedido tenebroso para o pescador não ir à pesca, tudo acompanhado por um violão que ecoa a áurea sombria do registro. 

Enquanto a obsessão desenha caminhos incertos, a música de Caymmi, que só pôde ser incorporada ao filme após um longo período de espera, permeia a narrativa como um personagem à parte, entrelaçando a história com uma melodia que é tão familiar quanto estranha, tão suave e ondulada quanto revolta.

Deba, para muito além de um conto de um homem e uma mulher momentaneamente distantes da vida, é uma lâmina que corta fundo nas complexidades humanas. Inspirado na faca japonesa de mesmo nome, usada principalmente para limpar peixes, o título ressoa tanto em sua literalidade quanto na metáfora, servindo como um símbolo da natureza cortante das relações humanas. Não à toa, na cena em que os personagens de Gabriel e Carla estão começando a se engalfinhar, ela enfia o dedo na boca dele e puxa, ela tal qual um anzol, ele tal qual um peixe recém-pescado. Vemos uma espécie de coreografia visceral que reflete o poder destrutivo e magnético do desejo. 

Fica claro que o filme nasceu de encontros que estimulam a centelha criativa. A própria diretora descreve como sua conexão com Carla Salle e Gabriel Leone foi imediata, quase predestinada, marcada por afinidades como o amor pela música e a arte. Em um relato compartilhado no Instagram, Magri conta como, no primeiro encontro com o casal, em que se viu diante do disco Blue, de Joni Mitchell, na estante do ator, não resistiu e comentou: “Amo esse disco”. Ao que ele respondeu: “Então, ele é seu”. Essa conexão simbólica se estende ao curta, em que o mesmo azul sobre o qual Mitchell fala e que estampa seu trabalho mais clássico não é apenas uma escolha estética, mas um personagem que toma a tela de assalto e que oferece um contraponto onipresente ao vermelho do peixe. Suas nuances profundas evocam o mistério e a melancolia do mar, simbolizando tanto o desconhecido quanto as emoções latentes que permeiam os personagens e suas histórias que não conhecemos.

Difícil não lembrar, em meio a tanto azul e fuga, do famoso verso escrito pela cantora canadense — “I wish I had a river, I could skate away on.” 

A fotografia, a abordagem sutil das atuações, movimentos calculados e espontâneos do encontro carnal e o eco de Dorival Caymmi, feito o canto que ressoa de dentro de uma concha, criam um ambiente natural que intensifica a aura de mistério e poesia de toda aquela imensidão azul e aquela ressalva vermelha. No vaivém das águas e das relações, está a beleza crua das emoções humanas, na qual cada gesto e cada silêncio contam uma história que reverbera muito além da tela. 

Com Deba, Bárbara Magri reafirma que o cinema pode ser tanto um grito quanto um sussurro. É noite, a maré sobe, e o filme deixa no ar uma pergunta: do que é feita a paixão que nos move, da solidez de um amor ou da fluidez de uma noite de desejo? Seja qual for a resposta, não há faca que corte mais.

Confira nossa conversa com a diretora Bárbara Magri:

Conte sobre a Deba e como a faca entrou na história toda.

Bárbara Magri: A Deba é uma faca japonesa, muito usada na gastronomia, especialmente para cortes precisos de peixe. O filme nasceu com a ideia de explorar o universo de alguém obcecado por cortar peixe, como um processo meditativo, quase sombrio, ligado à anatomia do peixe e a uma metodologia. No meio do processo criativo, descobri o chef australiano Josh Niland, conhecido por usar todas as partes do peixe, o que é muito doido. A coisa toda passa até uma ideia de serial killer. Isso inspirou um pouco a relação que o personagem e o filme têm com a faca. Mas, quando fomos para a locação — a Praia dos Amores, na Barra da Tijuca —, o contato com os pescadores locais trouxe um contraste interessante. Eles usam facas simples, práticas, para um corte funcional, diferente da Deba, que é mais sofisticada e não se encaixa naquele contexto. Esse contraste ajudou a construir o personagem do Gabriel como um outsider. Ele está ali, mas é alguém deslocado, quase escondido.

O filme acabou se tornando algo mais experimental, um retrato do lugar como representação de um estado de espírito e das sensações de se estar ali, com o cheiro forte de maresia e peixe. Até o pôster do filme traz um pouco dessa conexão, porque nele usamos o gyotaku, uma técnica tradicional japonesa de impressão de peixes em papel de arroz. Era assim que, antigamente, se anunciavam os peixes disponíveis nas feiras. Essa mistura de Japão e Barra da Tijuca parece estranha, mas foi um ponto que nos guiou.

O filme trabalha muito com simbologia e deixa questões abertas. Como equilibrar essa característica com o contar uma história clara?

BM: Esse curta foi o primeiro do Gabriel. E também foi o primeiro da Carla e o meu. A gente começou o processo criativo junto com a Laura Zamboni e, desde o início, a gente questionava: por que nas histórias o cara sempre é o mais legal? Porque geralmente é um cara escrevendo sobre outro cara, então ele acaba sendo mais complexo, charmoso, inteligente. Sempre pensei nisso. Eu fui a menina que queria ser o cara dos filmes porque ele parecia sempre mais interessante. E, como diretora, eu quero criar personagens femininas que não sejam perfeitas, não sejam intocáveis ou idealizadas.

Outra ideia minha era objetificar um homem na narrativa, quase como uma retratação histórica. Olhar para um homem como se olhavam para uma Lolita. Para mim, o Gabriel era a nossa sereia. Eu dizia isso pra ele: “Você é o cara que vamos explorar de forma estética, e não tão profunda.” A profundidade, para mim, estava na mulher, na personagem que trazia os dilemas reais. O filme começou com essa premissa: brincar com os símbolos do feminino e do masculino, questionar a ideia de dominação e construir isso com imagens e sensações. A relação entre os dois personagens é uma obsessão mútua. Ela domina o peixe, mas será que também domina ele? 

Esses símbolos foram surgindo, mas sempre sob um guarda-chuva de amor e obsessão compartilhada. Não queríamos entregar tudo de forma didática, mas criar algo sensorial. Se vendo o filme você consegue sentir o cheiro do lugar, já está ótimo!

Como foi trabalhar com os atores para transmitir tanta intensidade praticamente sem diálogos, com apenas gestos e olhares?

BM: Para além do filme, criamos uma ideia antes de começar a produção, sobre a história dos dois personagens. Eles até tinham nome, Lyra e Ulisses, baseados em mitologia grega. Passamos por vários processos de desconstrução dessa parte, descobrindo como eles operavam. E o diálogo é algo muito perigoso, principalmente quando é feito com pouco tempo e sem muita estrutura, sabe? É um filme independente, com uma equipe pequena e experimental. Ou seja, era basicamente sobre boa vontade e ver no que dava. Normalmente, quando você vai para uma sala de roteiro, com várias pessoas envolvidas, já é algo complexo criar diálogos realmente naturais.

Foi aí que pensamos no clipe com o Shia LaBeouf e a Margaret Qualley [da canção Love Me Like You Hate Me, da cantora Rainsford], de quando eles eram um casal. O clipe é muito bonito. Foi uma grande referência para a gente, porque Carla e Gabriel também são um casal e têm uma intimidade em cena que não conseguiríamos com outros atores. Isso já ajudou bastante. Em algum momento, pensamos que, se conseguíssemos transmitir essa intimidade numa dança — que na verdade não seria uma dança propriamente dita, mas uma troca corporal —, isso poderia ser o grande diálogo do filme. 

E a dança foi planejada detalhadamente ou houve espaço para improvisação?

BM: Chamamos o coreógrafo Alejandro Ahmed, que é sensacional, para criar uma coreografia. Explicamos a ele que queríamos que ela fosse o próprio diálogo, algo que expressasse a dominação. Ele passou um tempo com eles, construindo essa troca. A coreografia precisava ter uma certa violência, mas não no sentido literal. A Carla sobe no Gabriel, enfia a mão na boca dele, puxa a boca dele como um anzol. Durante o processo de ensaio, foi interessante ver como isso foi moldando a construção dos personagens. Em um momento, o Gabriel disse para a Carla: “Tá leve demais, quando você me pega eu consigo escapar. Tenta me pegar de uma forma que eu não consiga escapar”. 

Algumas partes de direção também foram importantes. Por exemplo, na cena em que a Carla chega por trás do Gabriel, não o avisávamos quando ela iria chegar. Isso criava uma surpresa para ele, uma tensão. E, mesmo sendo uma coreografia, o resultado nunca era igual, porque a intensidade variava. Às vezes estavam mais cansados, outras menos, e foi assim que fomos entendendo como esses personagens funcionavam de fato. O Gabriel tem uma entrega muito verdadeira e isso ajudou a encontrar um equilíbrio, porque o filme tem um tom kitsch, quase como um terror cafona. Eu não queria ser levada a sério. Não era uma tentativa de rir da situação, mas de não ficar exageradamente sério.

O resumo da história é que o grande diálogo do filme foi resolvido pela coreografia. A intimidade dos personagens, apesar de terem se conhecido na hora, foi facilitada pela intimidade entre Gabriel e Carla, que se conheciam na vida real. Isso deu energia para a cena. Tentamos explorar algo mais visceral e a coreografia foi essencial para isso.

O azul está muito presente no filme, e de uma maneira orgânica. Como chegar num resultado como esse?

BM: Eu sou mineira, né? E o mar é quase um mito para o mineiro, algo distante, quase inacessível. Crescer sendo de Minas é viver essa sensação de que a praia é como a Disney. O mar é essa coisa que, quando você vai para ele, é uma experiência mítica, quase como se fosse do outro lado do mundo. E aí, o mar se torna um símbolo, algo que, para mim, tem uma certa tensão. Não é um lugar alegre e solar, mas algo profundo, quase como um medo. E o Dorival, sendo baiano, com toda sua paixão pelo mar, mas sem saber nadar, combina com essa visão. Porque tem algo poético nisso, né? Ele não falava só sobre o mar, ele falava sobre morrer no mar.

Quando fomos fazer a direção de arte do filme, não queríamos explorar o mar de forma alegre, mas de um jeito mais denso. A locação que escolhemos tinha esse tom, mas alteramos muita coisa. O visual do filme foi sendo moldado de acordo com os recursos que tínhamos, até que, no processo de coloração, decidimos dar ao filme uma estética de 16 milímetros, com uma saturação mais forte. Isso trouxe um efeito único, realçando os azuis e vermelhos, mas também mantendo aquele tom noturno e sombrio. O resultado foi essa mistura de cores fortes e uma sensação de tensão, que não é nem feliz, mas também não é apenas escura. Tem uma complexidade ali.

Com todos esses elementos marítimos já presentes, o que o Dorival trazia de diferente?

BM: Eu acho a figura de Dorival Caymmi muito irônica. A escolha de trazê-lo para o filme, embora ele seja muito reconhecido, não era óbvia. É uma trilha mais lado B, que, para mim, é muito especial. Apesar de ser só no violão, tem uma pegada de rock’n’roll. Acho que a figura de Dorival é complexa nesse sentido, porque muitos amigos dizem que ele é triste, mas eu não acho. Para mim, tem algo esperançoso na sua música, é uma forma de dizer algo de maneira menos óbvia.

A ironia de Dorival é essa: ele tem algo de lado B, mesmo sendo uma figura tão conhecida e familiar. Eu queria que o filme refletisse uma perspectiva brasileira que não caísse no clichê. O cinema no Brasil tem muito mais investimento na publicidade do que no cinema autoral, o que acaba refletindo uma estética mais gringa. O que falta é uma estética genuinamente brasileira. A ideia, então, era explorar o lado sombrio de Dorival, uma Bahia e um Rio de Janeiro menos óbvios, mais velados, mais sensuais, mais proibidos. Uma inspiração para a fotografia do filme veio do Até os Ossos (2022) do Luca Guadagnino, que lida com temas de canibalismo e o proibido. Queria aplicar essa mesma atmosfera ao contexto brasileiro e à figura de Dorival, criando uma contradição mesmo.

Qual foi o processo para conseguir usar uma música dele?

BM: Filmamos no começo de 2023 e só agora estamos lançando, porque demorou para dar certo. Durante o processo criativo, a ideia de ter uma trilha do Dorival Caymmi surgiu. E foi mais de um ano para conseguir os direitos dessa música, Noite de Temporal. O processo foi longo, porque, inicialmente, temos que lidar com a família Caymmi, que libera muito pouco esse tipo de material. Foi uma grande sorte conseguir. Até consideramos usar uma versão sem ser a original, mas mantivemos a ideia e talvez seja um dos poucos filmes no Brasil a usar Dorival de verdade. Depois que conseguimos falar com a família, levou mais alguns meses para acertar com a Universal, que detinha os direitos do fonograma, diferente dos direitos da composição. No caso dessa trilha específica, o fonograma era mais importante. Então, no total, foi um período de praticamente um ano e meio até conseguir. Levou mais tempo do que qualquer outra parte do processo. Mas valeu a pena.

E a ideia sempre foi usar essa música em específico? 

BM: Essa música era uma obsessão. A gente insistiu e, no fim, conseguiu. Juro, do fundo do coração, para mim o grande presente do filme é ter Dorival Caymmi cantando. A figura dele, com sua complexidade, falando do mar e da vida ribeirinha, era algo essencial para mim. Ele transmite uma sensação de leveza, mas não há nada de leve no que ele está dizendo. Não é aquele Caymmi e seu violão que soa suave, é algo bem diferente.

Quando ele assobia, não é algo alegre. É um som que dá um frio na espinha, um sentimento de expectativa, de medo. Um medo de morrer, de ir para o mar e não voltar. É quase mitológico: o pescador que não volta. Ele não voltou por quê? Por que a chuva veio, a sereia o engoliu, ou por que ele saltou para algo que a terra não podia oferecer? Essa mitologia da pessoa que parte e de quem fica esperando, das mulheres que aguardam o retorno. É triste, complexo e, ao mesmo tempo, maravilhoso. Não é bonito da maneira convencional, mas tem uma beleza crua.

Lembro-me de me deparar com uma frase sobre Dorival que dizia: “O homem do mar que não sabia nadar.” Quando li isso, pensei: “a existência desse cara é uma poesia complexa demais!” É tão bom que, se não fosse a música, o filme não teria a mesma força. Coloca uma trilha genérica e nem eu iria querer ver esse filme!

Quais são os próximos passos?

BM: A minha pretensão agora é desenvolver a direção feminina, que ainda é uma questão. Ser diretora mulher é uma questão, dentro e fora da publicidade. Acho que minha prioridade é essa: trabalhar, sem que as pessoas vejam isso pelo gênero. Quero contar histórias sem que seja encarado como uma oportunidade para uma mulher dirigir algo, mas como uma oportunidade para uma pessoa que merece. Eu gostaria de ver mais mulheres nesse lugar de destaque. Então, pensando nos próximos passos, a resposta não é um projeto específico, mas uma resistência para que essa desigualdade diminua. As porcentagens de diretoras mulheres no Brasil são assustadoras. No mundo também, mas no Brasil é ainda mais. Então, mais importante do que um projeto, é quebrar essas barreiras.

Claro, dentro desse processo, fazer trabalhos mais autorais sempre será uma prioridade, sempre que possível. Mas, no fim das contas, não gosto de criar grandes expectativas. Sou bem pé no chão e, acima de tudo, não quero ficar parada. Acho que esse é o ponto: continuar trabalhando, independentemente do formato ou gênero.

Deba — ficha técnica

Dirigido por BÁRBARA MAGRi
Com GABRiEL LEONE & CARLA SALLE
Uma produção de ALiCE FiLMES & COSMO CiNE
Roteiro BÁRBARA MAGRi & LAURA ZAMBONi
Direção de Fotografia DANiEL VENOSA

Direção de Arte KARLA SALVONi
Coreógrafo ALEJANDRO AHMED LAMELA ADÓ
Figurino ANA AVELAR GRAÇA
Som Direto PEDRO SALDANHA
Edição e Montagem ViCENTE FRANÇA
Trilha Original DORiVAL CAYMMi