Falar bonito, escrever feio: linguagem e poder
Se em algum momento você se deparou com uma intimação judicial ou precisou participar da mera vida burocrática brasileira, então deve ter percebido: a linguagem que deveria ser ponte de comunicação é, no fundo, um entrave — quando não um simples mecanismo de poder. Sua forçada complexidade e tecnicidade são usadas para demarcar um território ao qual apenas uma parcela da sociedade, com a especialização devida, pode ter acesso. Não é nada exorbitante enxergar esse cenário com olhos preocupados, como se, por meio das palavras rebuscadas e construções sintáticas rocambolescas, o texto fizesse o máximo para se distanciar do público amplo e se colocar em um pedestal autoproclamado, inacessível para os que não compartilham da mesma bagagem cultural e intelectual.
As reverberações desse mecanismo são nefastas, garantindo a perpetuação de uma estrutura social que favorece os que têm acesso ao conhecimento jurídico, educacional e cultural. Não é uma coincidência que a elite tenha um maior acesso a advogados e recursos capazes de traduzir essa linguagem macarrônica, deliberadamente codificada; e, por outro lado, a maior parte da população, sem essa mesma formação, é deixada à mercê de uma comunicação pública que não lhe diz nada, não a envolve, nem a empodera.
Como, então, romper com uma realidade tão enraizada na cultura brasileira? Há quem esteja tentando.
A proposta de uma Política Nacional de Linguagem Simples, que visa a substituição da linguagem excessivamente formal por uma mais acessível e direta, é uma tentativa de desafiar esse sistema. Por meio do Projeto de Lei da deputada Erika Kokay, a adoção da Linguagem Simples no âmbito das comunicações oficiais é uma possibilidade — além de um enorme avanço na percepção de que a acessibilidade deve ser entendida como um direito universal, e não uma concessão a ser feita apenas quando conveniente. O propósito do projeto é claro: reduzir a tecnicidade excessiva e facilitar a compreensão da população de documentos como leis, regulamentos, notificações e orientações dos órgãos públicos.
De acordo com a Kokay, a proposta busca: reduzir os custos administrativos e o tempo dedicado ao atendimento ao cidadão; promover a transparência ativa e o acesso claro à informação pública; incentivar a participação popular e o controle social; e tornar a comunicação mais acessível para pessoas com deficiência intelectual. O texto também apresenta algumas técnicas de linguagem simples, como a utilização de orações em ordem direta, frases curtas, uma ideia por parágrafo, palavras comuns de fácil entendimento e uma organização esquemática do conteúdo. Quando se trata de comunicação oficial destinada a comunidades indígenas, o projeto determina que, além da versão em português, seja publicada uma versão do texto em língua indígena.
Essas mudanças, se bem implementadas, têm o potencial de quebrar a grande sistemática de exclusão que titereia a sociedade brasileira. A proposta de linguagem simples quer promover a inclusão de todos os cidadãos, independentemente de sua formação educacional. Ao tornar o processo de compreensão mais direto, permite que mais pessoas compreendam as normas que as afetam diretamente e participem ativamente dos processos democráticos. A proposta, no fim, é uma tentativa de democratizar a comunicação, aproximando o Estado do cidadão e, ao mesmo tempo, criando uma relação mais transparente e acessível. Na simplicidade, há revolução.
Mas, como toda mudança estrutural que envolve a diluição de saberes e portanto de poder, a oposição existe, e é grande.
A resistência à linguagem simples envolve uma crítica ao próprio projeto, que ao propor a adoção de uma linguagem mais acessível, pode ser interpretado como uma ameaça ao status quo da linguagem burocrática. Quando se propõe uma mudança dessa magnitude, toca-se em estruturas profundamente fincadas dentro do sistema jurídico e político. Porém, é importante ressaltar que o processo de simplificação não deve ser confundido com um empobrecimento da comunicação. A intenção da Política Nacional de Linguagem Simples é justamente buscar um equilíbrio entre clareza e profundidade, tornando as mensagens mais acessíveis sem abrir mão de seu conteúdo essencial. A questão, portanto, é encontrar um meio-termo onde a linguagem jurídica, com sua complexidade, possa ser compreendida de forma mais intuitiva, sem perder seu caráter técnico e preciso.
O receio de “empobrecimento” do conteúdo, ou de uma simplificação do que é cheio de nuances, se materializa em algumas emendas propostas ao projeto. O relator, senador Alessandro Vieira, por exemplo, propôs a exclusão de algumas exigências que poderiam tornar a implementação do projeto mais rígida, como a obrigatoriedade de seguir o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP). Segundo ele, a lentidão na atualização do VOLP dificulta o acompanhamento da evolução da linguagem. Além disso, ele retirou a exigência de criar duas versões dos textos (uma original e outra simplificada) e também propôs a inclusão de novas técnicas de simplificação. Essas modificações evidenciam que a resistência à mudança não vem apenas da parte dos que já dominam o uso da linguagem formal, mas também de um sistema que, ao ser desafiado, busca preservar sua exclusividade.
A forte oposição não se restringe ao contexto político e jurídico, mas também ao próprio corpo burocrático, onde a mudança é muitas vezes vista com desconfiança. Para os que estão acostumados a trabalhar com o vocabulário formal, a simplificação pode ser vista como uma diminuição da autoridade e do prestígio da profissão, como se a clareza fosse um sinônimo de superficialidade.
Mas a verdadeira mudança só virá quando entendermos que a simplificação da linguagem não se trata apenas de tornar as palavras mais fáceis, mas de criar um espaço onde todas as pessoas, independentemente de sua formação ou classe social, possam compreender as normas e interagir com o Estado. No caso específico do Brasil, as desigualdades educacionais e sociais tornam a compreensão das normas públicas ainda mais difícil. As classes mais altas, com maior acesso à educação formal, são aquelas que mais se beneficiam de uma comunicação complexa, pois possuem as ferramentas necessárias para decifrar e interpretar esse vocabulário técnico. Já as classes mais baixas, que carecem dessas ferramentas, ficam à margem, não apenas pela falta de formação, mas também pela falta de acesso à informação clara e objetiva.
O falar bonito e escrever feio visto amiúde acaba sendo uma metáfora de como, muitas vezes, a comunicação oficial se perde em excessos que excluem e distanciam a população. O desafio agora é transformar o “falar bonito” em uma comunicação que não apenas soe bem, mas que seja verdadeiramente acessível, democrática e capaz de envolver todos os cidadãos. Bonito mesmo é quando todos entendem.