
Quando a arte pode curar?
Uma música para um coração partido. Um filme para quem está de luto. Um livro para reorganizar os pensamentos após um trauma. Há milênios, a arte, em suas diversas formas, acompanha a humanidade, exercendo um papel fundamental na formação emocional. O Rei Leão, por exemplo, fez muitas crianças chorarem e sentirem emoções inéditas. Ao provocar essas primeiras descobertas, a arte sensibiliza e ajuda a dar forma ao que sentimos. Daí adiante, ela se torna também um possível caminho para a cura. Para muitos, é um meio de autoconhecimento e superação — a ponto de se tornar ferramenta em práticas terapêuticas que fazem dela sua principal aliada.
Dentre as diversas formas de arte utilizadas para acessar e reorganizar emoções, a literatura ocupa um lugar singular. O ato de ler exige um engajamento ativo, que precisa processar a informação verbal e construir mentalmente cenários, interpretar diálogos, projetar emoções nos personagens e, frequentemente, estabelecer conexões entre a narrativa e sua própria vida. Utilizamos nosso repertório imagético e sensorial para fazer pulsar as descrições de um livro. O texto pode ser o mesmo para todos, mas a experiência de leitura é única para cada um. E é nesse aspecto introspectivo e pessoal que a biblioterapia aposta.
O termo “biblioterapia” foi usado pela primeira vez em 1916. O responsável foi o ensaísta estadunidense Samuel McChord Crothers (1857-1927), que escreveu uma matéria satírica para o The Atlantic, na qual descrevia um encontro com um médico que lhe recomendava a leitura como remédio. O conceito é simples: livros e textos literários como instrumentos para aliviar o sofrimento emocional. E, apesar da leveza de sua primeira aparição, a ideia por trás do termo foi levada a sério por estudiosos ao longo do século XX, consolidando-se como um campo de pesquisa que investiga o uso da literatura para aliviar a dor e promover o bem-estar psicológico.
O estudo do vínculo entre literatura e emoções começou sobretudo a partir da aplicação da leitura em contextos hospitalares e psiquiátricos. Durante a Primeira Guerra Mundial, médicos e enfermeiros notaram que soldados traumatizados pelo combate apresentavam melhora emocional ao serem expostos a determinados tipos de literatura — seja pelo teor otimista e instrutivo, seja pela capacidade de gerar empatia e identificação no leitor. Obras de ficção, poesia e filosofia foram, então, introduzidas como complemento ao tratamento clínico, um experimento que, anos mais tarde, daria origem a programas de reabilitação psicológica baseados na leitura.
A partir da década de 1950, estudiosos como a estadunidense Caroline Shrodes, uma das principais referências na área, começaram a mapear os processos psicológicos que tornam a leitura uma ferramenta terapêutica. Shrodes descreve três fases essenciais no processo: a identificação, em que o leitor se reconhece em aspectos da narrativa, criando uma conexão com os personagens e situações descritas; a catarse, momento em que a leitura facilita a expressão emocional, permitindo que sentimentos reprimidos sejam experimentados de forma segura; e o insight, etapa em que o envolvimento com a narrativa leva a reflexões profundas sobre a própria vida, possibilitando mudanças de perspectiva e novos aprendizados.
Mais tarde, o impacto da biblioterapia começou a ser investigado, inclusive, sob a ótica da neurociência. Estudos conduzidos por David Comer Kidd e Emanuele Castano, da New School for Social Research, demonstraram que a leitura de literatura ficcional aprimora a Teoria da Mente (ToM) — a capacidade de compreender e prever emoções e intenções alheias. Em outras palavras, o contato com narrativas literárias torna nossos cérebros mais aptos a compreender e se conectar com o mundo emocional dos outros.
No Brasil, Clarice Fortkamp Caldin é a principal responsável por consolidar a biblioterapia como um campo de pesquisa acadêmica, não sem, de acordo com ela, sofrer muito preconceito da comunidade médica. A despeito das dificuldades, a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) tem investigado como a leitura pode atuar como um agente de transformação há décadas. Ela tem duas categorizações para a abordagem: “biblioterapia clínica”, utilizada como complemento em tratamentos psicológicos e psiquiátricos, frequentemente conduzida por profissionais da saúde mental; e “biblioterapia desenvolvimental”, aplicada em contextos educacionais e sociais, visando à construção da identidade, ao desenvolvimento da empatia e à promoção do bem-estar emocional. Essa diferenciação é essencial para entender que a biblioterapia não se restringe ao ambiente clínico, podendo ser incorporada a projetos sociais, educativos e culturais.
Atualmente, ao redor do mundo, programas de biblioterapia são amplamente aplicados em hospitais psiquiátricos, centros de reabilitação, escolas e até mesmo no ambiente corporativo. No Reino Unido, o programa Reading Well, desenvolvido pelo The Reading Agency em parceria com o Sistema Nacional de Saúde (NHS), estruturou uma lista de livros recomendados para auxiliar pacientes em tratamento de depressão, ansiedade e transtornos de estresse pós-traumático. Os resultados apontam que mais de 60% dos participantes relataram melhora no bem-estar emocional após a leitura guiada das obras indicadas. Outro exemplo é a Austrália, que, com o projeto Bibliotherapy Australia, promove grupos de leitura terapêutica em bibliotecas e centros comunitários, focando na construção de resiliência emocional por meio da literatura.
Por aqui, a prática ainda está em expansão, mas existem iniciativas relevantes, como projetos de leitura em hospitais psiquiátricos e presídios. Um exemplo importante é o programa Livros que libertam, que utiliza a leitura como ferramenta de reintegração social em unidades prisionais. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apoia a remição de pena por meio da leitura, permitindo que pessoas privadas de liberdade reduzam seu tempo de detenção ao se envolverem com obras literárias. Livros que libertam, assim, contribui para a reintegração social, ampliando perspectivas e ajudando a reduzir a reincidência criminal.
As pesquisas das últimas décadas e a eficácia de iniciativas como essas demonstram o poder da leitura em abrir portas para novos pontos de vista, ajudar a elaborar sentimentos complexos e fornecer respostas para perguntas que nem sabíamos que precisávamos formular.
No fim, a biblioterapia reafirma o que sempre esteve nas entrelinhas: os livros ensinam, acolhem, transformam e, em muitos casos, curam.