
Culto à juventude: qual é o lugar dos anos na sociedade?
A sociedade contemporânea vive uma contradição: ao mesmo tempo em que nunca se viveu tanto — a expectativa de vida global saltou de 52,6 anos em 1960 para mais de 73 anos em 2020, segundo dados do Banco Mundial —, o envelhecimento ainda é visto como um problema, um tabu, quase um erro de percurso. Enquanto o culto à juventude segue sendo celebrado em publicidade, cinema e redes sociais, a velhice permanece à margem, marcada pelo estigma da inutilidade e da decadência. Embora as discussões sobre o tema ganhem espaço nas redes sociais e o culto seja cada vez mais problematizado, na prática os mesmos preconceitos e problemas continuam a se repetir.
A obra Vida, velhice e morte de uma mulher do povo, do sociólogo francês Didier Eribon, serve como um ótimo ponto de partida para refletir sobre essa realidade. Eribon retrata a trajetória de sua mãe, uma mulher da classe trabalhadora, expondo como envelhecer, especialmente em contextos de pobreza, pode significar a perda progressiva de direitos e de visibilidade social.
A velhice, como coloca Eribon, não é um fenômeno isolado, mas sim parte de um ciclo maior de marginalização social. Ele discute a ideia de que, enquanto os corpos envelhecem e as energias diminuem, as pessoas de classes populares são frequentemente desvalorizadas em relação às suas versões mais jovens e produtivas. Nas classes mais abastadas, não é a força física que gera produção e, consequentemente, riqueza. Já entre os mais pobres, essa força se torna um fator crucial de sobrevivência: carregar cargas, limpar, construir, cozinhar para os outros. Nesse panorama, o envelhecimento não é apenas um processo biológico, mas um agravante da invisibilidade social que, ao ser marcado pela fragilidade física, intensifica a marginalização de uma vida inteira dedicada ao trabalho.
Essa invisibilidade é ainda mais exacerbada por uma sociedade que cultua a juventude como o ápice da vida, onde os corpos esguios, vigorosos e belos são exaltados enquanto aqueles que envelhecem se tornam, muitas vezes, esquecidos ou ridicularizados. A relação entre velhice e marginalização social é especialmente complexa para as mulheres, que enfrentam, de maneira mais pronunciada, a pressão de manter uma imagem jovem e desejável. O livro do sociólogo francês ajuda a vermos como a velhice é um estado de opressão, que transcende o desgaste físico e se manifesta na forma de uma constante desvalorização social.
Por essas e outras, o envelhecimento populacional exige uma mudança de paradigma na forma como a sociedade encara a velhice. Caso contrário, estaremos fadados a uma contradição dolorosa e amplamente sentida. Esse descompasso fica evidente quando analisamos os números: a OMS estima que, até 2050, o número de pessoas com mais de 60 anos dobrará, ultrapassando 2 bilhões de indivíduos no mundo; no Brasil, o IBGE projeta que, em 2030, haverá mais idosos do que crianças e adolescentes. A priori, tudo isso é ótimo, estamos vivendo mais. Porém, políticas públicas, infraestrutura urbana e até o mercado de trabalho ainda não se adaptaram a essa nova realidade.
Alexandre Kalache, de 79 anos, tem sido uma das principais vozes no estudo da longevidade e do envelhecimento. Com 50 anos de dedicação ao tema, ele é um defensor da importância de se preparar para o envelhecimento de maneira mais eficiente e consciente, especialmente no Brasil. Em entrevista à BBC News Brasil, ecoando a visão de Didier Eribon, alertou sobre um dos maiores desafios do país: o envelhecimento acelerado da população, sem a devida preparação estrutural e social. “Estamos envelhecendo em pobreza, imensa desigualdade, face a catástrofes naturais”, afirmou o gerontólogo, destacando que, enquanto os países desenvolvidos tiveram tempo para se preparar para o envelhecimento, o Brasil está enfrentando este processo sem recursos adequados.
A desigualdade social e a falta de políticas públicas eficazes são questões que preocupam Kalache, que defende a criação de mais instituições públicas de longa permanência para idosos, como “asilos” ou “casas de repouso”, e a melhoria dos serviços voltados à saúde da população idosa. O Estatuto do Idoso, em vigor há mais de 20 anos, precisa ser mais respeitado, segundo ele, com um compromisso real por parte do Estado para que os idosos possam envelhecer com dignidade. Kalache também critica a forma como a responsabilidade pelo cuidado dos mais velhos recai sobre as famílias, muitas vezes as mulheres, que já carregam uma carga enorme de responsabilidades e limitações financeiras.
Ainda assim, surgem iniciativas que buscam reverter essa lógica. A OMS, por exemplo, lançou a Década do Envelhecimento Saudável 2021–2030, com o objetivo de mudar a forma como se vê e se trata as pessoas idosas. Entre as metas estão o combate ao idadismo e a promoção de cidades mais inclusivas para a velhice. Mas é claro que ainda temos muito a evoluir. A sociedade está em transformação para acomodar uma população cada vez mais madura.
O grande desafio agora não é apenas garantir mais anos de vida, mas garantir que esses anos sejam vividos com qualidade. A velhice, longe de ser uma queda, pode ser vista como um tempo de potência, de experiência acumulada e de novas possibilidades — isso se a sociedade estiver disposta a derrubar seus próprios preconceitos.
É como diz Kalache, “se você quer chegar bem aos 90 ou 100 anos, comece agora.” Se isso vale para o corpo humano, também vale para o corpo do Estado. O futuro já está sendo escrito, e ele depende das decisões de agora.