
Arte viva e em mutação: a alquimia de Nati Canto
“Corromper a ordem é uma tentativa de subverter o que já está dado, de abrir brechas em sistemas que se apresentam como estáveis e imutáveis. Gosto de confundir, de embaralhar sentidos, de habitar espaços de suspensão onde as coisas ainda não foram totalmente nomeadas.”

No ateliê de Nati Canto, a ideia de cozinha é transfigurada em um território imprevisível, sensorial, alquímico. Lá, não à toa, o cozinhar vira um devir artístico. Pense em uma arte que não quer representar o mundo, mas fermentá-lo a seu modo. “Isso”, reflete a artista, “tem a ver com resistir a uma lógica de previsibilidade e controle que, muitas vezes, vem do mundo, das instituições, dos sistemas de produção. É como se eu precisasse me proteger desse chamado constante à conformidade.”
Corpos orgânicos, ingredientes e resíduos alimentares deixam seus papéis habituais para se tornarem matéria escultórica. Nessa transmutação, a artista funde gastronomia, arte e vida em um processo de cocção simbólica e material. “No espaço da cozinha, que levo para o meu trabalho, encontro um terreno fértil para a ruptura com o que é certo e me jogo naquilo que escapa, que ainda está se formando e não pode ser facilmente categorizado. É uma forma de manter viva a poesia e a possibilidade de invenção.”


A cada nova série que apresenta, a artista tensiona o tempo e seu poder de transformação, trazendo à baila elementos em estado de transição: gelatinas pigmentadas com urucum, barbatimão, pães de massa morta, biosilicones, tripas artificiais, espumas. Com eles, faz da prática no ateliê ser regada de verbos herdados da cozinha, como assar, triturar, derreter, esfriar, coar, secar. Cada técnica carrega um modo de fazer e uma cosmologia, desafiando a fronteira entre arte e culinária. “Nunca vi transição entre arte e gastronomia na minha vida”, afirma. “Não acredito que somos feitos de interrupções tão delineadas. A insistência em definir com precisão todos os campos, seja ‘arte’, ‘gastronomia’ ou qualquer outra área, responde mais a uma ideia produtivista do que à forma como realmente vivenciamos nossas experiências.”

Essa fricção entre campos, e a recusa em fixá-los, é ponto central do incômodo que Nati quer provocar, sendo a dificuldade de “lidar com aquilo que não se pode classificar”, para ela, “uma das maiores dificuldades do pensamento hegemônico ocidental.” É de maneira proposital, então, que sua produção recusa a clareza. O que se vê, se toca ou se cheira nunca se entrega por completo. “Não me interessa controlar como alguém vai se envolver com o que faço”, atesta a artista em prol da ambiguidade da matéria. “O que me move é justamente a possibilidade de abertura, de provocar, de cutucar o outro.”

Ao invés de tentar dominar a matéria, Nati colabora com ela, aceitando a mutação. “Trabalho com matéria orgânica, e isso significa lidar diretamente com ciclos de vida e morte”, explica. “Mas não se trata de algo que simplesmente ‘desaparece’. Entendo o processo como um corpo. Assim como nossos corpos, os biosilicones também envelhecem, se modificam com o tempo, enrugam e reagem ao ambiente. Pra mim, isso é parte da obra, não uma falha.”
Isso, como ela destaca, não é novo na história da arte. Cita como inspiração artistas como Eva Hesse, Heidi Bucher e Dieter Roth, cujas pesquisas com materiais instáveis e mutáveis seguem como referências poéticas, sensoriais e ainda vivas no campo das artes visuais. No centro desses universos, tanto no dela quanto no de suas referências, está o corpo, como um sistema em funcionamento que não apenas consome, mas assimila, filtra, transforma e expele. “O corpo que digere e o corpo erógeno, no meu trabalho, muitas vezes se sobrepõem. Ambos são corpos que sentem, absorvem, assimilam e expulsam. E é nesse movimento que vejo potência poética.”


Entre o erotismo e o nojo, entre o instinto e a construção cultural, Nati tem um fraco pela zona de atrito. “O nojo, por exemplo, é um ponto de entrada importante, ele não é uma mera reação instintiva, mas uma construção social e política. Ele opera como um mecanismo de separação, de exclusão do outro. Só que o que é considerado nojento ou aceitável muda conforme os parâmetros sociais e temporais”, explica. “O que é excluído tem relação direta com corpos marginalizados: velhos, gordos, doentes, não-normativos… Me interessa esse tensionamento tanto material quanto simbólico e creio que a arte possa ser um espaço para explorar esse desconforto.”
Pensar no futuro da obra de Nati Canto é aceitar que ele não se dará por continuidade linear, mas por ramos que se bifurcam. “Atualmente”, reflete ela, “sinto que minha pesquisa atingiu um estágio muito sólido, porque desenvolvi uma fórmula com uma durabilidade e resistência mecânica muito alta, algo que considero uma conquista recente e extremamente gratificante. Isso abriu um leque enorme de possibilidades que antes pareciam fora de alcance.” Ou seja, há ainda muito a ser fermentado, cozido, contaminado.
Nesses corpos-processo que Nati entrega ao mundo, há obras que respiram, envelhecem, apodrecem e, justamente por isso, continuam acontecendo.