
Jazz, colonialismo e as partituras do poder
A história da luta pela independência africana não se fez apenas com discursos inflamados, marchas revolucionárias ou a brutalidade dos golpes de governo. Ela também vibrou nos contratempos do jazz. É essa pulsação dupla, tão política quanto musical, que estrutura Trilha Sonora para um Golpe de Estado, documentário-ensaio indicado ao Oscar do belga Johan Grimonprez — disponível no Sesc Digital, gratuitamente.
O filme orquestra um concerto de imagens, sons e arquivos que, ao se entrelaçarem, compõem um ritmo para a compreensão da geopolítica do século XX. No improviso de trompetes e saxofones, desenha-se a cartografia tortuosa de uma guerra em que a música virou arma e os músicos tornaram-se embaixadores involuntários. Se recontar a tragédia da morte do líder anticolonial congolês Patrice Lumumba é o ponto de partida do filme, reorquestrar os arranjos entre arte, poder, colonialismo e propaganda, num crescendo que reverbera até hoje, é o verdadeiro propósito de Grimonprez.
1960, o ano da África. Dezesseis países recém-libertos do jugo imperialista ocupam suas cadeiras nas Nações Unidas. Entre eles, o Congo de Lumumba se ergue como símbolo de um futuro que parecia possível: anticolonial, pan-africano, soberano. Mas, por trás das cortinas diplomáticas, outra coreografia se ensaiava: uma dança de sombras realizada pelos Estados Unidos e a Bélgica, com co-autoria dos muitos outros braços ocultos dos interesses ocidentais, a fim de impedir que esse destino floresça. Por que não? Bem, o de sempre. O futuro que Lumumba ousou imaginar desafiava a sinfonia dos impérios, composta a partir da espoliação de recursos e corpos. E quem rege a orquestra não tolera notas dissonantes.
É este o cenário que Grimonprez nos convoca a ouvir. E o que ouvimos não são apenas as notas, mas os códigos, os disfarces, as contradições que ecoam baixinho no fundo. O timbre grave de Louis Armstrong, a intensidade de Nina Simone e as bochechas infladas de Dizzy Gillespie são símbolos de resistência, estando no front da luta pelos direitos civis nos EUA. Mas a vil instrumentalização disso acontece e os três são enviados como representantes culturais de uma suposta democracia americana para países africanos recém-independentes.

O jazz, então, nascido da dor e da criatividade negra, acaba sendo vitrine do famigerado, e tão falacioso, american way of life. A ironia é brutal. Enquanto os músicos ganhavam “corações e mentes” na África, eles mesmos eram cidadãos de segunda classe em seu próprio país.
Armstrong, que inicialmente recusou missões culturais, desembarca no Congo em outubro de 1960, com recepção triunfal, quase messiânica. Três meses depois, porém, Lumumba está morto. Torturado, fuzilado, dissolvido em ácido com a conivência de agentes da CIA, autoridades belgas e o silêncio cúmplice das grandes potências. A presença do músico em solo congolês não era um gesto de boa vontade cultural. Era uma cortina de fumaça para despistar a movimentação real do desmonte de uma revolução nascente.
Grimonprez não narra a história com a frieza de um relatório. Ele prefere colar imagens de arquivo, trechos de entrevistas, registros históricos, capas de discos e discursos políticos como quem improvisa um solo de saxofone, evocando o ziguezague da história e a impossibilidade de narrá-la de forma linear quando há tantos fios soltos e tantas omissões. O que Trilha Sonora para um Golpe de Estado propõe é, além do resgate histórico, uma reflexão sobre como o Ocidente constrói seus mitos de liberdade enquanto mina as liberdades alheias. É uma pergunta extremamente atual sobre o papel da arte em contextos de manipulação.
E esse jogo duplo com o presente se faz valer ainda mais quando há a inserção de propagandas contemporâneas de iPhones e Teslas, apontando para uma continuidade da velha e conhecida pilhagem. O Congo de ontem, fonte de urânio para as bombas nucleares, é o mesmo Congo de hoje, rico em coltan e cobalto para alimentar a era digital. O colonialismo mudou de roupa, mas não de lógica.
Entende-se como Lumumba morreu, mas nos perguntamos também o que sua morte impediu de nascer. É impossível ver as imagens de um jovem e carismático líder africano, com um projeto continental de união, e não pensar nas ruínas do pan-africanismo, ainda hoje um ideal fragmentado por interesses externos. Ao fazer da música personagem central, Grimonprez propõe uma outra escuta do mundo. Não aquela das versões oficiais, mas a que se dá nas entrelinhas, nas notas jamais tocadas porque foram silenciadas antes do tempo.
Ecoa daí o ruído incômodo da história sendo remixada diante de nossos olhos. É a consciência de que os golpes de estado não terminam no disparo. Eles reverberam, se atualizam, e seguem se camuflando, em um contexto no qual há, em comparação, mais lugares para se esconder.
Se não escutarmos com atenção, seguiremos dançando no ritmo imposto por quem sempre escreveu as partituras do poder.