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Duplicidade, de Lucas Rubly (2024).
#52SatisfaçãoLiteratura

O polegar de Martina

por Toni Moraes

Enquanto sentia o xixi respingar no verso de suas coxas, Martina lamentava a depilação que fizera no dia anterior, movida por uma mistura de insegurança e desconhecimento a respeito da etiqueta daquele universo que estava prestes a desbravar. Deslizou a polpa do indicador e do médio de sua mão esquerda pelo púbis, subiu e desceu o monte de Vênus com a lisura da pele a lhe estranhar o tato. Pareceria antiquada? Demodê? Vislumbrou no espelho sobre o balcão à sua frente as dúvidas que lhe mordiscavam a confiança. Aquele rosto, que sentada no vaso sanitário rosa-bebê-anos-70 Martina conseguia enxergar dos lábios para cima, contrastava em tudo com o da confiante doutora especialista em literatura latino-americana feminista, presença garantida em qualquer evento a respeito do tema no país. Mas ela não estava ali para um congresso, sorriu. Quantos anos haveriam de ter se passado desde a última vez que o peito repicara naquele ritmo? O gelado da aliança na pele lisa de sua intimidade insinuava 25, a justa medida da falta de interesse de Lauro. Despiu-se do ouro e jogou-o dentro da bolsa, que repousava aberta sobre as torneiras do bidê tornado vaso, de onde cinco lanças-de-São-Jorge se esticavam em meio ao musgo e suculentas em seu afã de tocar o forro de gesso. Deveria ter tirado antes a aliança? De fato, não conhecia os preâmbulos daquele novo sacramento. Como fazia Lauro? Tão cuidadoso, nunca esquecera sobre a pia ou console do carro o anel dourado com o nome dela gravado. Guardava nos bolsos das calças de alfaiataria, sempre tão bem passadas, ou dos paletós de linho, seus preferidos mesmo no inverno? Ou será que colocava na carteira, junto da foto da filha ainda criança sorridente sob o sol de Ubatuba? Não, não era momento de pensar nisso. Não queria trazer Lauro àquele banheiro, àquela situação. O marido já ocupava espaço demais em sua vida e o novo rito de que comungaria não deveria ser mais um sob seu jugo. Enxugou-se com o papel higiênico, lamentando aquele bioma todo no bidê e a ausência de uma ducha higiênica. Não sabia o que seria de suas vontades nos últimos anos se em casa não tivesse uma. Olhou para o box, mas receava causar má impressão caso ligasse o chuveiro. Quando ainda cintilava algo no intervalo entre seus corpos, Lauro gostava que tomassem banho juntos. Martina também. Gostava em especial da pele mal enxuta que lhes ressaltava o desejo, feito fruta fresca na barraca da feira. Sorviam o sumo um do outro até o fastio. Havia também a dormência no polegar do pé direito, preâmbulo da tremedeira que logo lhe tomava pés, pernas, joelhos, coxas e quadris e que angiologista nenhum foi capaz de diagnosticar. Lauro chamava de mal-de-tesão, ela gostava, afastando um tanto a preocupação com o histórico de doenças do coração na família. Mas isso tudo era retrato antigo, Martina mal podia recordar seus matizes. Pôs-se de pé sobre o ladrilho, rosa como o restante da cerâmica do banheiro, e subiu a calcinha, que, num sopro de ousadia, logo desceu novamente e enfiou no mesmo lugar que a aliança. Aquilo haveria de ser uma boa surpresa. Desceu o vestido, as mãos fazendo as vezes de ferro de passar. Gostava daqueles vincos no lugar e de como lhe caía bem o azul-pastel da viscose. Encarou-se no espelho e com as mãos arrumou os cabelos. Conservaria ainda os traços que, anos antes, Lauro não cansava de elogiar? A notificação na rede social, a mensagem privada, a conversa cheia de emojis de coraçõezinhos e sorrisos, o convite para tomar um vinho vindo de alguém com quem mal trocara meia dúzia de palavras no aniversário de uma amiga e que agora se lamentava por ter demorado tanto a aceitar… isso tudo não haveria de ser indício de que, sim, a beleza que o marido via e capturava com sua Yashika ainda estaria ali, mesmo que, talvez, escamoteada entre as camadas de insegurança que se assentaram com o passar dos anos feito pó nos móveis de um lar negligenciado? Foi na paulatina escassez de vontade da lente de Lauro que Martina leu os primeiros sinais de que algo se perdera. Estalou a língua, tentava mandar ralo abaixo a presença do marido junto com a água que lhe refrescava as faces, mas o hábito cobra seu preço. Respirou fundo. Enxugou os respingos na bancada de granito branco macaúba com as mãos, percorrendo os veios da pedra gelada com os dedos antes de revirar a bolsa sobre ela e encontrar o batom drama-nude que lhe tingia os lábios. Retocou. Alguns beliscões nas bochechas para atiçar a cor que o vinho tinto já lhes insinuara. O coração retumbava, os cabelos eriçados na nuca. Se cavoucasse com afinco aqueles sinais, encontraria uma ponta de culpa talhada nos tenros anos de sua criação cristã. Mas estava resoluta: ao abrir aquela porta, não haveria de reprimir desejo ou curiosidade. Mais do que merecer, devia aquilo a si mesma, dizia-lhe o rosto resoluto no espelho. Era justo, depois de tanto tempo, que também pudesse se dar ao luxo de viver algo diferente, uma aventura, talvez. Encolheu e esticou os ombros e o pescoço. Aspirou todo o ar daquele banheiro e atacou a maçaneta. Viu Aretusa no sofá a acompanhar cada passo seu, observando-a por cima dos ombros, taça de vinho firme entre os dedos de unhas curtas e bem cuidadas, volúpia entre os dentes. Martina, trespassada feito mártir, não pôde deixar de sorrir quando sentiu no polegar do pé direito o formigamento que um dia fora companhia tão frequente. Sentou-se ao lado da mulher e bebeu de sua taça o líquido que, naquele momento, era o único capaz de aplacar sua sede.

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