
Do Pré-Homem à Revolta: 15 anos de Revista Amarello no Teatro Oficina
Fotos de Gleeson Paulino
Em dezembro de 2024, comemoramos árduos 15 anos de vida em grandíssimo estilo no Teatro Oficina, templo de Zé Celso, na cidade de São Paulo, onde essa revista nasceu.
Convidei o Márcio Bulk, diretor musical do show de 10 anos, para darmos continuidade ao espetáculo de 2019, que foi baseado na primeira parte do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha, agora tendo como inspiração a segunda parte, O Homem.
Minha relação profunda com o livro começou em 2018. Já havia lido na escola com muita má vontade, mas, muito desanimado com esse país (como geralmente fico), cheguei até ele de novo através da Marisa, minha professora de literatura do colégio. Na época, estava saindo de uma depressão, e reler a primeira parte do livro, debatendo linha a linha com ela e com seu conhecimento monumental, foi, para mim, como um jorro de prazer, orgulho, resgate e beleza.
Logo na página dezenove, me deparo com:
“A terra atrai irresistivelmente o homem, arrebatando-o na própria correnteza dos rios que, do Iguaçu ao Tietê, traçando originalíssima rede hidrográfica, correm da costa para os sertões, como se nascessem nos mares e canalizar as suas energias eternas para recessos das matas opulentas… o rio Grande rompe, rasgando-a com a força viva da corrente, a Serra da Canastra, e, norteados pela meridiana, abrem-se adiante os fundos vales de erosão do rio das Velhas e do São Francisco”.
Um assombro. O rio que sai do mar e vai para o sertão. Tudo às avessas, uma ode ao solo e à formação do solo brasileiro.
Encarar O Homem para mim foi muito natural. Sabia da polêmica do tema, com todos os espinhos de sua época, mas também sempre tive muito claro que faríamos uma obra do nosso tempo. Euclides, com seu texto científico-poético, desestruturou a equipe, que ficou com medo, mas acho fundamental colocar o dedo nas nossas feridas, porque é assim que sairemos do lugar que estamos para um outro melhor: nos deparando com nossos preconceitos diariamente, saindo da zona de conforto, falando a respeito e questionando tudo que fizemos.
Para isso, retomamos o grupo que montamos em 2019 para a comemoração de dez anos da revista. Fred Demarca, Juliana Linhares, Rafael Lorga, Claudia Castelo Branco, Thiago Thiago de Mello, Marcos Campello, Lívia Nestrovski, Fred Ferreira, Rodrigo Maré, Zé Manoel e, dessa vez, com a participação da lendária Áurea Martins — além do Márcio, quem fez brilhantemente o roteiro musical e toda a curadoria do espetáculo, que você pode assistir no nosso Vimeo.

Para esse show de 15 anos no Teatro Oficina, eu queria um telão retangular que seguisse a largura proposta pela Lino Bo Bardi entre platéia e palco, envelopando todos esses artistas na arquitetura do espaço. A Carol Amares e a Carol Buček produziram essa tela que passou o curta-metragem Retorno Infinito, dirigido por Pedro Perdigão e roteirizado por Tadeu Bijos, que propôs de uma maneira linda que partíssemos da segunda parte do livro, mas que contássemos a história de uma menina sertaneja guerreira, cheia de futuro pela frente.
Para mim é um privilégio estar no meio de todos esses artistas, que considero o que temos de melhor hoje no Brasil. No final, é isso que vale.
— Tomás Biagi Carvalho


E de ouro o sertão se alumiu
MÁRCIO DE OLIVEIRA
— Roteiro musical e curador
Ao me convidar para fazer a direção de Segundo ato: do pré-homem à revolta, Tomás me fez um único e inegociável pedido: precisaríamos de um convidado especial. Confesso que, no primeiro momento, achei despropositada a ideia. O espetáculo ficaria pra lá de inchado, pensei. Afinal, iríamos trabalhar com onze artistas no palco, os mesmos do aniversário de dez anos: A primeira chuva não molha… Fora isso, minha mãe do céu! Quem seria esse convidado? Vários nomes passaram pela minha cabeça, e, em uma de nossas conversas, Cláudia foi taxativa ao dizer que deveria ser alguém significativo para nós e por quem tivéssemos a mais completa admiração. Ainda assim, me senti vacilante. Somente durante um longo bate-papo com Ilessi é que veio o nome de Áurea. Eu mesmo fiquei espantado com a minha inépcia em não cogitá-la de imediato para o projeto. Áurea é grandiosa. Tendo uma carreira fortemente sedimentada no samba-canção, no jazz e na MPB, é da mesma estirpe de Elza Soares, Alaíde Costa, Clementina e Elizeth. Fui completamente atravessado por essa ideia. Ilessi me deu seu contato e, após receber o ok de Tomás, mandei um zap para ela — que me respondeu prontamente e, para a minha surpresa, aceitou o convite.

Ao compartilhar com os demais músicos que Áurea seria nossa convidada, pareceu que o espetáculo havia se transformado por completo. Todos, sem exceção, ficaram encantados e emocionados em poder trabalhar ao seu lado. Áurea tornou-se nossa guia e cúmplice. E o que era antes apenas uma participação especial converteu-se em essência e fundamento. Os ensaios passaram a ser lugar de afeto, partilha, confluências. Acho que nunca vivenciei algo do gênero. Para mim, era impossível não chorar quando ouvia tão de perto sua voz entoando: “Oh, mana, deixa eu ir / Oh, mana, eu vou só / Oh, mana, deixa eu ir / Para o sertão do Caicó”. A palo seco, “só a lâmina na voz, sem a arma do braço”, diria Cabral de Melo Neto. Ah, pobre Euclides… Ele não estava preparado para Áurea, nem para o aluvião que se anunciava. Seus sertões foram inundados pelos vissungos de Diamantina, pelas águas da Baía de Todos os Santos, pela Amazônia profunda, por botos, por orixás, por cigarras e mangangás… Krenak, Nêgo Bispo e Jota Mombassa se fizeram presentes. A ira, a fome e a morte ganharam novo prumo. O sertão de Euclides se empreteceu e luziu de um ouro negro. Áureo. E, no Teatro Oficina, o espetáculo tornou-se rito. Uma celebração ancestral, na qual a mansidão e a aspereza não se antagonizavam, mas se entrelaçavam. Zé Manoel, Lívia, Fred, Campello, Maré, Demarca, Juliana, Rafael, Thiago, Cláudia, Áurea e eu… Durante algumas semanas, expomos nossa intimidade de tal maneira que já não consigo imaginar minha história sem eles. E creio que eles também pensam assim. Acho que, de algum modo, Belo Monte se entranhou em nós. Na fundura. Perene, pelo entendido. “O sertão é dentro da gente”, sentencia Rosa. E quem diabos sou eu pra desdizer?
Àṣẹ


PEDRO PERDIGÃO
— Diretor do curta-metragem Retorno infinito
Alguém me perguntou — não lembro quem, talvez nem importe — por que eu queria fazer filmes. Dei risada. Falei qualquer coisa e lancei umas palavras frias que a gente joga quando tenta justificar um desejo que não cabe nas planilhas ou slides. A verdade é que eu faço filmes porque eles me tiram do eixo. Me lançam pra fora do corpo, suspendem o tempo como um glitch no cotidiano. Filme, pra mim, é suspensão. É falha. É travessia.
Na Amarello, esse deslocamento virou método. A curiosidade acende, o processo consome, a prática arrasta. Mas é só quando o corpo pisa no chão — no chão mesmo, com poeira, com cheiro, com calor — que a história aparece. Ela não se escreve. Ela aparece. Feita de suor, de tropeço, de ouvir o outro respirando ao lado. O set é meu templo sujo. É ali que eu me dissolvo.
Fazer um filme, no fundo, é criar problemas. E eu gosto de problemas. Gosto de estar cercado deles, me debatendo, testando saídas. É nesse caos que eu sou mais eu. Fico atento à atmosfera. Cheiro de sertão, nomes desconhecidos, buracos na estrada, gente que olha no olho. No set, entro num estado transcendental — um fluxo onde paz e tensão se abraçam, um arrepio que não passa. É como ficar debaixo d’água por tempo demais, mas sem querer subir.
Retorno infinito nasceu de um acordo tácito: vamos escrever uma história e depois fingir que ela nunca existiu. Chegamos nos lugares com o roteiro, mas abertos àquilo que o roteiro não previa — que é sempre o que mais importa. A van era o limite. Cabíamos todos dentro dela, como num pacto. Tínhamos que resolver tudo ali, com as mãos e o que estivesse ao alcance. Teve dia em que o Ribas, nosso diretor de fotografia, virou mecânico. A van morreu em pleno sertão de Pernambuco. Tiramos todos as nossas camisetas. E ele, com a calma de um monge sujo de graxa, tirou umas ferramentas da mochila e ressuscitou o motor com um gesto que eu chamaria de místico se não fosse tão mecânico.
Tem muitas histórias. E todas elas me fazem lembrar que estou vivo.
O projeto começou com o Tomás — o diretor criativo desta publicação. Ele propôs um mergulho no capítulo “O homem” de Os sertões. A ideia era pensar o corpo e a terra a partir daquela escrita estilhaçada de Euclides, cheia de contradições, colonialismo e arrogância. Eu não queria concordar com ele. Eu queria responder. Desviar. Inventar a partir do atrito.
Daí veio o roteiro, conduzido por Tadeu Bijos — que também escreveu Deságue, meu último filme. As ideias se acumularam como poeira nos cantos da conversa. Mas, de novo: é no espaço, com o corpo, que as coisas se constroem. Por isso fomos pra Canudos. Roteiro na mão, mas vulneráveis ao que viesse. E o que veio foram outras camadas.
Encontramos Alicia e Poeta — nomes que parecem personagens, mas eram reais. Eles entraram no filme e mudaram tudo. Trouxeram um tempo diferente, um jeito de olhar. A equipe, sempre pequena, estava ali por escolha. Dalila, peça central da travessia. Michel com seus pensamentos existenciais. Flávio nos guiava com sua van pelo desconhecido. Alexandre, que captava o som e os silêncios e ainda embalava nossos deslocamentos com trilhas improváveis.
Canudos foi aula, rito, avalanche. A cidade nos engoliu e depois devolveu transformados. Um dos focos era a fé — não a institucional, mas a que pulsa nas entrelinhas, nos rituais menores. O filme se pendura nesse estado alterado de consciência. E ali, algo se abriu.
Lembro dos apitos. Evaldo Oliveira, nosso artesão. Mãos que talhavam madeira como quem escreve oração. Foi ele quem esculpiu o nosso “Coração” no filme. Descobri que uns apitos em seu ateliê vieram do avô dele. Simulavam cantos de pássaros. E, pra mim, pareciam portais. Chaves sonoras pra entrar em sonhos — ou sair deles.
Teve Monte Santo, teve steadicam pesada, teve lusco-fusco na igreja do parque estadual, teve mergulho no açude. Teve o ritual Pankararu — sempre com cuidado, escuta, conversa. E também teve o dia da vela. Eu decidi filmar uma vela derretendo por uma hora, sem cortes. O ódio da equipe era visível. Mas eu precisava daquele tempo. A câmera registrando a combustão lenta do tempo. O cartão de memória nos salvou. Passou meia hora e eu apaguei a vela. Fomos jantar no horário previsto.
Essa vela virou chave. Imagem que foi parar no telão do Teatro Oficina, abrindo o espetáculo. Trinta minutos dela, silenciosa, derretendo em 4K vertical. Como se o tempo todo tivesse um sentido escondido esperando ser aceso.
A pós virou outro filme. Ou um espelho sujo dele. Entrei nela como quem tateia no escuro, esperando esbarrar em algo que revele. Foi quando puxei da estante um disco que nem lembrava mais. Salvador, quando voltava de uma residência, Walter Smetak na capa. Coloquei pra tocar. E ele veio — o som, o invisível. As imagens começaram a se mover de outro jeito. Como se algo abaixo da superfície estivesse tentando falar. Foi mais uma aparição.
Agora escrevo com os filmes ainda inacabados. O curta e o registro do espetáculo. O Will me pediu este texto. Falta um mês pro curta estrear no Cinesala. Ainda estou perdido. Ainda estou montando. Ainda estou desviando. Os caminhos são muitos, mas o corte seco tem nome: prazo.
E às vezes é isso que salva a gente. O fim. A data. O susto. O susto é método.


TADEU BIJOS
— Roteirista
A minha memória mais íntima d’Os sertões é de 2019, na abertura da Flip, em Paraty. Zé Celso em cena, junto com a trupe do Teatro Oficina, estudantes da cidade e indígenas de aldeias guarani encenavam Mutação da apoteose, um espetáculo que mesclava trechos d’Os sertões com imagens de invasões de favelas, Brumadinho coberta de lama, confrontos da reforma agrária do MST. Nos momentos finais da peça, as luzes se apagaram, e a voz espectral do recém-falecido João Gilberto cantou o hino nacional. No escuro, eu comecei a chorar de maneira balbuciante. Por um momento, eu achei que a morte de João era a prova irrefutável de que o Brasil “estava acabando”. Eu não tinha lido o livro em que a obra, original, se baseava. Por alguma razão, depois daquele dia, achava que não iria mais lê-lo. Tudo me parecia longe demais, incompreensível perante as conjunturas. Era, enfim, janeiro de 2019.
Quando o Tomás me chamou para adaptar Os sertões para os 15 anos da Amarello, como com tudo que ele me chama para fazer, me senti honrado pelo desafio. As diretrizes eram tão claras quanto ambiciosas. “Vamos adaptar a segunda parte do livro, ‘O Homem’, para um filme que irá acompanhar um espetáculo musical, mas que também irá funcionar como um filme por si só.” Me senti positivamente encurralado pelas minhas memórias e fui encarar, junto com meus colaboradores, os fantasmas de Euclides.
Me surpreendi com a amplitude da obra, um registro supostamente “jornalístico” sobre o remexer das grandes placas tectônicas que moldam um país. É um registro de um Brasil que estrebucha sob o peso do seu próprio destino — que vai se revelando, de forma alternada e aterrorizante, tão predestinado quanto acidental.
Mais que fixar identidades, interessa-se pela pela travessia, pela passagem do espírito sobre o seu tempo, sobre as paisagens e pessoas — tão comuns quanto heróicas — que se encontravam no olho desse furacão. Ao acessar essa chave, a ousadia adaptativa de Zé Celso e Camila Mota pareceu natural e, talvez de forma levianamente ousada, senti-me à vontade para a inevitável interpretação.
Existe uma fábula atribuída a Borges: a de um império que, em busca de um conhecimento absoluto, criou um mapa tão detalhado que coincidia exatamente com o território. O mapa e a terra se tornaram indistintos, e, ao longo do tempo, o mapa foi abandonado, deixado a se desfazer sob sol e chuva. Assim, as pessoas que viviam sob o império caminhavam em um terreno que se revelava nas fendas e rasguras do mapa.
Pensando no mapa de Borges (e em Euclides, João, Zé, etc.) quis, portanto, estabelecer os lugares e os parâmetros para a travessia; e, mais importante ainda, para o ato de se aventurar; de procurar, sempre, o olho do furacão. Afinal, apesar da passagem de João, o Brasil continua aí — interminável, indecifrável, imenso.
Saúdo e agradeço a Amarello, que há 15 anos nos inspira a nos lançar sempre em aventuras.




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