
A lenda da Iara: entre o feminino, o mítico e o colonial
A lenda da Iara, figura tradicional do folclore brasileiro, é frequentemente representada como uma sereia sedutora e perigosa, que atrai homens para o fundo do rio. No entanto, sob uma perspectiva contemporânea e feminista, essa figura pode ser reinterpretada como símbolo de resistência, autonomia e poder feminino. Iara, uma guerreira indígena transformada em uma criatura mágica, mantém sua força e capacidade de decisão — algo historicamente negado às mulheres.
Na leitura feminista, destacam-se alguns eixos principais relacionados à figura da Iara. Há uma inversão de papéis patriarcais, já que, ao contrário da expectativa de submissão feminina, Iara se mostra independente e forte. Ela demonstra resistência e autonomia, pois, mesmo transformada em sereia, continua exercendo poder sobre seu destino, escolhendo quais homens atrair para as águas profundas. Essa atuação também pode ser interpretada como uma crítica ao patriarcado, funcionando como uma vingança simbólica contra o domínio masculino e invertendo a lógica de controle dos corpos e das vontades. Em algumas interpretações folclóricas, a Iara desempenha ainda o papel de guardiã da natureza, com enfoque na força feminina desta.
Porém, sua figura é ambígua. Para alguns, ela é perigosa; para outros, é símbolo de beleza e mistério. Esse caráter multifacetado abre espaço para diferentes interpretações, revelando como os mitos se moldam à cultura e ao tempo.
As raízes da lenda: Ipupiara e a hibridização cultural
Embora hoje a Iara seja fortemente associada à cultura indígena, sua origem é bastante emaranhada. Estudos do renomado folclorista Câmara Cascudo revelam que, até o século XVII, não há registros de uma sereia indígena como a conhecemos. Em seu lugar, existia o Ipupiara, um monstro aquático masculino descrito como um “demônio d’água” pelos povos tupis do litoral. Segundo relato do cronista português Pero de Magalhães Gândavo, em História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil (1576), o Ipupiara era um ser de aparência grotesca, coberto de pelos, com bigodes no focinho, conhecido por matar suas vítimas com um abraço mortal, assim como uma jiboia.
Esse ser monstruoso não tinha qualquer relação com sedução ou beleza, e sim com medo e destruição. Sua imagem habitava o imaginário dos colonizadores, semelhante a outras criaturas míticas e marítimas da época, como serpentes monstruosas ou lulas gigantes.
Com o tempo, influências culturais europeias e africanas foram se fundindo ao imaginário indígena. A figura da Iara teria sido formada a partir de uma convergência: do Ipupiara indígena, pela ligação com as águas; das sereias gregas, que seduziam marinheiros com seu canto; e da influência portuguesa, da qual herdamos alguns mitos sobre sereias. As mais famosas são as Tágides, ou ninfas do Rio Tejo, que assumem o papel de musas na obra Os Lusíadas, de Camões. Cabe também mencionar as Moiras ou Mouras encantadas, cuja origem é discutível — há quem diga que essa figura surgiu da fuga de reis ou nobres muçulmanos durante a Reconquista, que abandonavam suas filhas, as quais se refugiavam em locais próximos à água, onde cantavam à espera de ajuda, mas outra versão defende que a origem estaria em mitos irlandeses, devido à própria palavra “moira”, de origem celta, e ao fato de que, em muitas histórias, essas figuras têm cabelos loiros ou dourados. Da herança africana, temos a orixá Iemanjá, senhora das águas e da fertilidade, bem como Mami Wata, um poderoso espírito das águas, venerado em diversas partes da África e na diáspora africana, frequentemente representada como uma sereia ou uma mulher com uma cobra, que simboliza tanto o encanto quanto o perigo, a cura e a destruição.
Esse processo de hibridização cultural transformou o monstro em mulher. A mudança de gênero da criatura foi reforçada pelo Romantismo e pelo Indianismo do século XIX, como nos poemas de Olavo Bilac e de Gonçalves Dias. Nesse período, a Iara passa a ser representada como uma bela mulher de olhos claros e cabelos loiros — características nitidamente coloniais e europeias, que contrastam com suas raízes indígenas. Ainda assim, a cultura popular foi resgatando elementos originários, reintegrando a figura da Iara ao imaginário amazônico e ribeirinho.
A história trágica da Iara: do heroísmo à maldição
Uma das versões mais conhecidas da lenda de Iara conta que ela era a mais habilidosa guerreira de sua tribo, o que despertou a inveja dos irmãos. Eles tentam matá-la, mas acabam sendo mortos por ela em legítima defesa. Seu pai, chefe da tribo, incapaz de suportar a vergonha de ter os filhos homens mortos por uma mulher, ordena a morte da filha. Após ser lançada ao rio Solimões, os peixes e a lua a transformam em um ser mágico — uma sereia. Assim, o mito reforça a injustiça sofrida por mulheres fortes em sociedades patriarcais, mas, ao mesmo tempo, oferece a leitura do poder feminino como algo capaz de renascer mais forte, apesar das injustiças.
Reflexões culturais e de gênero
A história da Iara também serve como ferramenta para analisar o papel da mulher na sociedade. O mito carrega elementos como beleza, inveja, rebeldia, punição e controle masculino — estruturas sociais denunciadas por pensadoras como Simone de Beauvoir, que afirma: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. A frase ecoa o destino da Iara, que passa de guerreira a monstro, depois a sereia encantadora, moldada por culturas que tentaram controlar sua imagem e seu significado.
Portanto, a lenda da Iara vai muito além do folclore: ela é um espelho das tensões entre culturas, gêneros, colonialismos e resistências. É também um lembrete de como os mitos se adaptam e sobrevivem, servindo para questionar e reinterpretar a história.

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