
O mito do signo solar
Que a astrologia tenha se desenvolvido em diálogo com a mitologia não é nenhum mistério. Mesmo quem pouco sabe sobre o tema reconhece que o nome atribuído aos planetas provêm de alguns dos deuses gregos ou greco-romanos.
Na prática astrológica, a posição de Mercúrio indica como se manifestam temas ligados à comunicação, à troca de ideias ou mercadorias, às transações e ao ir e vir — seja em uma perspectiva coletiva, ao analisar como Mercúrio se configura no céu em um dado momento, ou individual, ao analisar as condições desse planeta no mapa de nascimento de alguém. Nenhuma surpresa em reconhecer em tais temas os atributos e as características do deus grego Hermes e, posteriormente, do greco-romano Mercúrio.
Entretanto, por mais que pareça que o conhecimento astrológico tenha surgido como uma derivação das narrativas mitológicas, ele foi desenvolvido em paralelo, ainda que de forma imbricada, à mitologia. Um dos tratados astrológicos mais antigos, compilado aproximadamente 1.500 anos antes da Era Comum, documenta a observação do céu empreendida pelos povos da Mesopotâmia, que relacionavam certas posições de planetas, ou configurações planetárias complexas, com a ocorrência frequente de tipos de eventos na Terra. Nesse tratado, chamado Enuma Anu Enlil, há uma passagem que associa certo posicionamento de Mercúrio à maior presença de ladrões no reino. Vale apontar que o nome do planeta não era Mercúrio, e sim Nabu, divindade do panteão assírio-babilônico associado à escrita, à inteligência e à manipulação engenhosa dos dados.
Muito antes de chegar à Grécia, o conhecimento astronômico-astrológico já tinha sido consideravelmente desenvolvido pelos povos da Mesopotâmia, como uma forma de estreitarem sua comunicação com os deuses, para assim mapearem a passagem do tempo e organizarem o curso da vida social de forma alinhada a forças maiores — expressas pelos planetas-divindades. Com esse intuito, observavam o que se manifestava na Terra quando os astros se configuravam de determinada forma no céu. Dependendo da natureza dos eventos e acontecimentos que se repetiam quando um planeta se destacava, mais claramente ele era entendido como expressão de uma divindade.
Quando esse conhecimento chega à Grécia, em torno do século V antes da Era Comum, vindo principalmente da Mesopotâmia, a descrição das qualidades e dos atributos de um planeta, até então associada a deuses e mitos daquela cultura, foram então transpostos a alguns dos deuses gregos: àqueles que mais se assemelhavam às características já atribuídas aos corpos celestes.
Uma passagem curiosa do mito de Hermes, filho de Zeus e Maia, diz que, logo ao nascer, ele teria se soltado do leito onde havia sido colocado e então viajado até a Tessália, onde furta parte do rebanho que se encontrava sob a guarda de Apolo. Astuto, amarra ramos nas patas dos bichos para que suas pegadas não deixassem rastro. Ao ser descoberto, usa de artimanhas para negar sua relação com o roubo e, quando não é mais possível evitar, reconhece o erro e promete a Zeus que nunca mais mentiria, mas tampouco diria toda a verdade. Os gregos associam Hermes ao planeta até então associado a Nabu, e que no mundo greco-romano ganha o nome de Mercúrio.
Outros atributos de Nabu eram o domínio da escrita e seu dom profético, por ser quem estabelece a comunicação entre os humanos e os deuses. Protetor dos escribas, que anotavam, dentre outras coisas, as posições planetárias e seus eventos terrestres correspondentes. Hermes, por sua vez, é também o mensageiro dos deuses, é ele que faz a travessia entre os diferentes mundos, é o tradutor, o intérprete. Ambos falam do ir e vir, das estradas. Uma característica que ganhou mais destaque quando os atributos de Nabu e Hermes se expressaram posteriormente em Mercúrio, divindade greco-romana, é a figura do comerciante, do mercador que circula por diferentes feiras e vilas, falando diferentes línguas, realizando as mais diversas transações, de ideias a mercadorias. Não à toa a iconografia associada a Mercúrio ganha mais um elemento, além do caduceu e das sandálias e chapéu alados: um saco para guardar as moedas.
O mito é uma narrativa que dá contorno aos fenômenos e aos ciclos da natureza, como parte dos esforços humanos para explicar a vida e seus desdobramentos. No caso da astrologia, serviu para dar contorno às qualidades e aos significados associados aos planetas, protagonistas no desenvolvimento desse saber.
Um planeta, além de significar uma série de atividades e experiências, rege também um ou dois signos, emprestando a eles seus atributos e configurando de forma determinante suas características. Mercúrio, por exemplo, rege Gêmeos e Virgem, oferecendo-lhes assim sua sagacidade, inteligência, e rapidez de percepção, características que Gêmeos e Virgem expressam cada um à sua maneira.
Os planetas, entretanto, não só moldavam as características dos signos, mas serviam como modelos, com sua miríade de referências mitológicas, para uma tipologia humana. Nos períodos medieval e renascentista, eles eram entendidos como astros que governavam não só tipos de eventos, mas também o temperamento dos seres humanos, o que figurava como uma tipologia físico-comportamental. Assim, as pessoas que expressavam a natureza de um planeta, ou exerciam as atividades associadas a ele, eram chamados de “filhos do planeta” — por exemplo, os “filhos de Mercúrio”.
Para se chegar a esse temperamento predominante, por um período bastante extenso da história da astrologia se desenvolveu um método de cálculo, envolvendo diversos pontos de um mapa de nascimento. Dentre os mais centrais para se chegar a essa tipologia, ou temperamento, figurava a identificação de um ou mais planetas predominantes no mapa. Para isso, se observava se havia planetas em posições de destaque, como a conjunção com o ângulo ascendente, a mais forte delas. Observava-se, também, qual planeta regia não só o signo ascendente, mas o signo onde se encontrava a Lua. E não só, pois além do planeta que regia posição zodiacal da Lua no mapa de nascimento, era considerado também aquele que regia a posição da Lua cheia ou nova antes do nascimento, dentre outros pontos. O cálculo é complexo e envolve nuances, assim como o é a trama formada por cada instante de um céu em constante movimento.
Talvez o mistério maior, nos tempos atuais, seja a ideia persistente de que apenas um signo, o signo solar, descreva quem a pessoa é. Sintoma de tal distorção é o frequente enunciado, “fulano é geminiano” ou “meu signo é Áries”, como se isso resumisse o temperamento de alguém. Ninguém é signo nenhum. Uma pessoa expressa o céu todo sob o qual nasceu. Diante da riqueza de repertório astrológico que o céu de nascimento oferece para descrever quem se é e para onde se vai, a prevalência dessa ideia equivocada, fruto do encontro da astrologia com a cultura de massas do século XX, é um mito que não engrandece um saber tão cheio de camadas e referências, sobrepostas e sedimentadas há séculos e séculos.

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