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A queda do homem, de Cornelis Cornelisz van Haarlem (1592)
#53MitosLiteraturaSociedade

Adão e Eva do Éden caíram — e, segurando suas mãos, seguimos em queda

por Gustavo Freixeda

Um jardim verde e vasto se estende até onde os olhos não conseguem ver. Há uma sinfonia no ar, cantada pelas folhas viçosas que balançam ao vento, pelos pássaros que gorjeiam melodias nunca antes entoadas e pelos insetos que zunem em concordância. No centro de tudo isso, estão um homem e uma mulher, corpos desnudos, sorrisos de orelha a orelha. A palavra que sobrevêm para descrever o estados de espírito é só uma: maravilhamento. O sentimento, porém, é a armadilha que está à espreita. Próximos a uma árvore com frutos reluzentes, eles não podem deixar de se sentirem curiosos com aquelas maçãs tão vermelhas e suculentas. Ressoa, então, o sibilar ardiloso de uma serpente para convencê-los de que devem comer um daqueles frutos, muito embora tenham sido proibidos de fazê-lo por quem os colocou ali. Eles refletem, mas acabam cedendo. Daí em diante, a humanidade ficou fadada ao sofrimento, trancada para fora do paraíso. O que viramos, ou deixamos de virar, nasceu ali. 

Uma história de símbolos, conflitos e vilões, tudo que uma grande narrativa precisa ter. Mas é possível tomá-la como real? 

Sim. Bem mais do que imaginamos. E não estamos falando somente de épocas passadas, quando a ciência estava em estágio incipiente, nem dos círculos em que Santo Agostinho gastava sua retórica. Estamos falando do mundo atual, de pessoas que não necessariamente são cristãs fervorosas. Stephen Greenblatt, historiador literário e escritor estadunidense, escreveu, no seu livro Ascensão e queda de Adão e Eva, publicado em 2018, que “pesquisas recentes mostram que milhões de pessoas, mesmo hoje, apesar de tantas evidências científicas, ainda declaram acreditar na história de Adão e Eva, não como alegoria, mas literalmente. O motivo dessa crença literalista tem pouco ou nada a ver com ignorância”.  

Qual é o motivo, então? Qual é o poder dessa e de outras histórias na humanidade? “Sabemos, ou achamos que sabemos”, escreve Greenblatt, “que os chimpanzés, animais tão próximos a nós, não especulam sobre a origem da desobediência dos chimpanzés; que os orangotangos estão destinados a morrer; e que os bonobos, animais tão sociáveis, não contam, enquanto cuidam dos pelos uns dos outros, uma história a respeito das primeiras cópulas entre bonobos machos e fêmeas. (…) Nenhum desses animais, acreditamos, inventou uma história de origem”. 

Queremos histórias, precisamos delas para sobreviver. Evidentemente, há duas maneiras de olhar pra isso: ou somos seres inquisitivos, sensíveis e criativos, muito mais evoluídos que qualquer outra criatura do planeta, ou estamos perdidos numa busca eterna por um sentido maior, num esforço que nunca vinga, a despeito da complexidade de nossas narrativas e de nossos avanços.  

Filipe Jota, professor e mestre em História pela USP, acredita que “muitas dessas histórias revelam, sim, nossa impotência diante de questões como a morte e o destino, bem como a angústia que pode derivar de relações baseadas no amor e na amizade. No entanto, as mesmas histórias frequentemente destacam a resiliência humana no enfrentamento desses desafios e incertezas, motivada pela consciência de que o desconhecido, ainda que incerto, traz esperança. Os mitos apresentam modelos de mundo que desejamos criar, preservar ou resgatar — sendo, por isso, essenciais tanto para a manutenção quanto para a transformação das relações sociais”. 

Pensar que a parábola de Adão e Eva acabou por definir muito de quem somos enquanto espécie, enquanto sociedade, é aterrador e admirável. Aterrador porque revela o quanto nossas ideias sobre culpa, desejo, punição e diferença, que ecoam fortemente até hoje, foram moldadas por uma narrativa tão primordial, repetida à exaustão por séculos. E admirável porque, apesar de tudo, é uma manifestação impressionante da nossa capacidade de criar e recriar, já que essa mesma história tem servido como fonte inesgotável de reflexão, criação e reinvenção, sendo uma espécie de espelho sobre o qual projetamos nossos medos mais íntimos e nossas esperanças mais antigas. 

Talvez nenhum outro pensador tenha feito desse espelho um instrumento tão rigoroso quanto Santo Agostinho. Foi ele quem, ao interpretar a história do Gênesis, cravou as bases de uma leitura que associaria o desejo ao pecado, a mulher à queda, e a humanidade inteira a uma herança de culpa inescapável. Durante anos, Agostinho mergulhou na tentativa de compreender — e justificar — a dor, a mortalidade e a imperfeição humana a partir daquele gesto inaugural, o momento em que Eva estende a mão e Adão consente. 

Como escreve Greenblatt, “ao tornar a história de Adão e Eva o episódio central do drama da existência humana, Agostinho abriu as comportas para uma corrente de misoginia que turbilhonou durante séculos em torno da figura da primeira mulher. (…) Não importava que o Cristianismo, em seus anos de formação, houvesse acolhido bem as mulheres, juntamente com escravos, criminosos e outras categorias oprimidas pela ordem social romana, e lhes oferecesse lugar à mesa dos abençoados. (…) Muitas outras autoridades, dentro e fora da igreja, de bom grado atribuíam a responsabilidade quase inteiramente a Eva”. 

Essa operação interpretativa sedimentou uma imagem de Eva como arquétipo da tentadora, da frágil e da culpada, permitindo que a narrativa da queda servisse, por séculos, como fundamento simbólico da exclusão das mulheres da esfera pública, da autoridade e até mesmo do saber. O mito, rearticulado por Agostinho, ajudou a organizar o mundo sob uma determinada hierarquia. À mulher coube a culpa original, a desobediência, a tentação, o caos. Ao homem, a cumplicidade silenciosa, depois a dor, o trabalho e a vergonha. Daquele jardim perdido brotou uma narrativa que atravessaria milênios, moldando doutrinas religiosas e concepções morais, políticas e estéticas do Ocidente.  

​​Acha que “milênios” soa como um exagero? Pois então pense: o que lhe vem à mente quando o nome de Yoko Ono é mencionado? ​​​ 

​Eva segue sendo apedrejada: a mesma queda, diferentes jardins. 

“Precisamos ter em mente”, comenta Filipe Jota, “que o imaginário social é uma estrutura complexa e dinâmica. Além de ter dupla dimensão — consciente e inconsciente —, essa estrutura é composta por diferentes camadas, construídas em vários momentos ao longo da história. Quase nunca uma imagem tem apenas um significado. A mesma imagem ou ideia pode ser apropriada de formas distintas, segundo grupos e interesses distintos, tanto no presente como em diferentes períodos históricos”. 

É justamente essa plasticidade simbólica que permite que Adão e Eva sobrevivam no ideário popular. Da pena austera de Agostinho à gravura sensual de Albrecht Dürer, pintor do Renascimento nórdico que também trouxe seus dois centavos à roda, a narrativa foi absorvendo camadas de interpretação — ora sendo usada como aparato de controle, ora como ferramenta de libertação. 

“Não se trata de questionar se os mitos ainda têm lugar no mundo atual”, acrescenta Jota, “mas sim de compreender quais mitos ganham maior adesão e quais interesses eles ajudam a sustentar”. 

A queda de Adão e Eva de seu pedestal teológico não marcou o fim de seu poder. Ao perderem autoridade religiosa, ganharam vitalidade cultural. Tornaram-se arquétipos, modelos narrativos, metáforas universais sobre o começo de tudo e sobre a dor de saber que esse começo sempre envolve perda. 

“Toda construção e apropriação mítica envolve algum grau de distorção”, pondera o professor e historiador. Alguns mitos se sustentam em fontes históricas ou achados arqueológicos; outros, afirma, “são quase que exclusivamente fruto da imaginação coletiva”. O importante, segundo ele, não é separar os verdadeiros dos falsos, mas reconhecer esse processo e lidar com os mitos com consciência. “O essencial é termos consciência disso e usarmos os bens simbólicos com responsabilidade e senso crítico.” 

Mas fazemos isso? Talvez a passagem perdure porque ela não responde — ela tensiona. Mais do que tudo, nos devolve perguntas. Quem somos quando desobedecemos? O que fazemos quando descobrimos que estamos nus? Por que seguimos comendo frutos que sabemos que não devíamos tocar? As respostas, sabemos, podem ser inquietantes. 

Adão e Eva continuam vivos, não porque habitam um céu ancestral ou porque estão envoltos por uma aura bíblica. Continuam vivos, ainda no encalço de nossa consciência coletiva, porque, no fim, nós somos eles. 

Independentemente do que acreditamos, aquele Gênesis é nosso. E, de era em era, seguimos caindo. 

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