
Adentrar a mata, sair da caverna
Está no imaginário dos chamados povos “civilizados” a ideia de que a floresta é lugar de perigo, onde indivíduos se perdem para nunca mais serem encontrados e vivem inúmeros riscos, como serem picados por bichos peçonhentos, devorados por grandes animais ou sumirem para sempre em abismos e despenhadeiros. A floresta como antítese da cidade e o ser humano como superior ao animal são imagens construídas durante séculos, forjando-se a separação radical entre natureza e cultura, humanidade e vida selvagem.
Comigo, desde pequeno, se deu o contrário. Nasci em uma grande cidade cosmopolita, o Rio de Janeiro, no início dos anos 1980. Aos seis meses de idade, fui com meus pais para a pequenina cidade em que viviam, Barreirinha, no interior do Amazonas, distante quase 400 quilômetros de Manaus, a capital do estado, numa viagem de barco de mais de um dia de navegação. Habitar a cidade e a floresta, oscilar entre as margens ribeirinhas e o asfalto carioca, transitar por ruas, mercados e cinemas, por um lado, e, por outro, capoeiras, lagos e cabeceiras de rios — eis o que me constitui.
Por ser criado durante a infância numa cidadezinha incrustada no verde equatorial das terras baixas da América do Sul, a mata me deu casa, me permitiu viver. Sempre pensei na floresta como lugar de encontro. Na verdade, de muitos encontros: com os habitantes humanos — indígenas, não indígenas, ribeirinhos, quilombolas — e com os não humanos — árvores, insetos, igarapés e tucuxis. Enquanto na cidade grande se dizia “hoje comi um peixe”, assim, de modo genérico, em Barreirinha era sempre “hoje o almoço foi jaraqui frito, ontem o jantar foi caldeirada de bodó”. Dar nome às coisas sempre me pareceu uma forma mais profunda de conhecimento. Então seringueiras, cupiúbas, molongós e lombrigueiras sempre ocuparam meu imaginário, e não simplesmente “árvores”, como se estas fossem coisas distantes e impessoais. Aprendemos com Georg Simmel, o sociólogo alemão, que cidades grandes moldam indivíduos de algum modo indiferentes uns aos outros. Pudera, as multidões são engolidoras de individualidades, nos esmagando feito tratores. Uma cidadela próxima à selva me mostrou que podem conviver em harmonia florestal o gavião, o camaleão, a ariramba e o bicho-homem. O caboclo ribeirinho pode ser arisco, desconfiado, fatalista. Mas não, ele não é blasé. Integrado ao todo, ele é parte da terra e de seu ao redor, não seu dono.
Minha história com Barreirinha começa muito antes de mim, é claro. Pelo que pesquisei e pelo que os antigos me disseram, lá viveu meu bisavô, Gaudêncio Thiago de Mello, prefeito quatro vezes e hoje nome de uma rua da cidade. Nascido na década de 1850, esse meu antepassado, de quem herdei o sobrenome e o destino ribeirinho, plantava cacau e foi gente “importante” naqueles idos. Meu avô, Pedro Thiago de Mello, e meu pai, Amadeu Thiago de Mello, também nasceram ali. Meu avô conheceu minha avó, dona Maria (nascida no seringal Campinas, na fronteira com a Amazônia peruana), em Borba. Ele era homem letrado, estudou em Manaus, para onde a família se mudou já com os filhos, no início dos anos 1930. Todos trabalharam duro, a vida não era fácil. “Estudos e juízo” foram as palavras ditas no porto da capital amazonense por meu avô para meu pai quando este embarcou para o Rio de Janeiro para que terminasse os estudos e ingressasse no curso de Medicina. A ideia era sair da floresta, ir para a capital, de lá para o mundo, onde estava o progresso e as luzes do conhecimento.
O futuro sonhado pelos meus avós para o meu pai, nascido em 1926 em um barranco do rio Paraná do Ramos, era se fazer gente no sul do Brasil. Esse caminho me faz lembrar da alegoria da caverna, o texto clássico do filósofo Platão, que li pela primeira vez no primeiro ano do curso de Ciências Sociais, que fiz na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Assim como no texto grego, em que o prisioneiro-filósofo precisa sair da caverna para perceber o mundo de sombras em que vivia, acorrentado pelas ilusões dos sentidos e do senso comum, preso pelo medo da novidade e pela zona de conforto, meu pai entrou naquele navio da Loide Brasileiro para ver o mundo com outros olhos. Abandonar Manaus, a “Paris dos trópicos”, para ler, no original, Mallarmé, Baudelaire, Victor Hugo. Deixar para trás o mundo selvagem de tartarugadas, banhas de boto e puxadeiras de desmentiduras para conhecer museus e bibliotecas, “penetrar o Municipal” e seus bailes de gala na Cinelândia.
Fazer a vida no Rio de Janeiro era, naquele tempo, sair da caverna. Um mundo novo se descortinava a cada livro, cada jornal, cada obra de arte sorvida com gosto por aquele caboclo suburucu. Meu pai lançou seu primeiro livro de poemas em 1951, o lindo Silêncio e palavra. Não parou mais, embora tenha abandonado o curso de Medicina para viver do que a palavra escrita, falada e cantada lhe pudesse oferecer. Foram dezenas de livros lançados, entre prosa e poesia, ensaios e traduções. Encantador de palavras, viveu na Bolívia, no Chile, na Argentina, na Alemanha e em Portugal. Andou pelos quatro cantos do mundo, do Japão a Tegucigalpa, sempre movido pelo poder transformador das palavras e das utopias. Liberto das pequenezas do mundo dos homens, saiu da caverna, e saiu cantando, levando luz aos deserdados do mundo, feridos pela indignidade de um sistema que oprime e separa os seres humanos em classes: ricos e pobres, possuídos e despossuídos, burgueses e proletários. A luz do conhecimento o conduziu para bem longe. Do rio Andirá, foi ao Sena; do Solimões, às águas do Reno, onde sentiu, delirando de tanta razão, o cheiro da pimenta murupi e o cupuaçu exalando seu perfume. De tanto olhar o sol, a vista ficou turva. Assim como no texto platônico, em que o filósofo deve regressar à caverna, o poeta, com mais de cinquenta anos de idade, voltou ao Amazonas.
É nesse momento que apareço, do encontro entre minha mãe, a jornalista Ana Helena Gomes e o poeta revolucionário que ganhou o mundo e retornou para a floresta. Sonhadores, ergueram moradias modernistas na pátria da água. O arquiteto Lúcio Costa as desenhou e lhes deu de presente as plantas. As casas da minha infância foram construídas entre palmeiras, mungubeiras, acapuranas e taperebazeiros. Os quintais eram povoados de quatis, veados, pacas, tucanos, garças, lagartos, cobras e macacos. Dentro do terreno havia o caminho Manuel Bandeira, a alameda Lúcio Costa e a biblioteca Moronguetá. O mundo das artes, das letras e da cultura misturado ao mundo animal e vegetal. Cresci vivendo dentro dessa realidade mítica.
Cabelo preto e liso, cortado à modo de cuia, eu era um índio no Leblon. Avesso às sandálias, preferia andar descalço. Em Barreirinha, eu era o caboclo do Rio de Janeiro. O encontro entre mundos me fez, ao mesmo tempo, doutor em Ciências Sociais e cantador ribeirinho. Nunca deixei de estar no Amazonas, na Casa da Poesia, que meu pai ergueu sobre palafitas na Ponta da Gaivota, no distrito de Freguesia do Andirá. É de lá que observo as luzes da cidade grande, cujas leis continuam sendo as do dinheiro e da burocracia. O tempo na floresta é outro. É o do jabuti, do bicho-pau, do galo d’água e da formiga tucandeira. Não esqueço o que me disse, certa vez, minha amiga Anjinha, sábia senhora das plantas do rio Andirá, que prepara um banho de cheiro com girão, hortelãzinho, vindicá, cuia mansa e mucura caá: “o que eu faço não custa dinheiro”. Lá no interior do mato, longe dos mercados, dos centros financeiros e dos arranha-céus de concreto, entendi a diferença entre preço e valor. E aprendi a inverter a lógica moderna: é preciso adentrar a mata, sair da caverna. Ver a cidade pela perspectiva da árvore. Limpar os olhos.
Floresta é lugar de liberdade. Somos nós, os citadinos urbanoides, que estamos presos desde crianças, acorrentados pelas telas das televisões, dos computadores e dos smartphones. Imóveis, absortos, vivemos incapazes de criarmos novos olhares, ganharmos novas perspectivas, desenvolvermos repertórios mais amplos do que aqueles que nos fornecem as redes, os aplicativos e os algoritmos. Observamos o que está à nossa frente — a luz piscante, ofuscante dos telefones celulares — sem volver a cabeça e enxergar o que está ao redor — a natureza da qual nos afastamos — e o que está dentro de nós: nosso rico mundo interior, negligenciado por tanta informação, que sequer damos conta de absorver.
Mas fora desta caverna em forma de metrópole há um fogo latente que não para de arder — e não é o fogo das queimadas e de incêndios criminosos. Entre nós, os prisioneiros iludidos pelo Vale do Silício, e a luz que existe lá fora há um caminho pelo qual podemos subir, tão alto como a sumaumeira. Devemos estar atentos aos títeres tecnológicos que turvam nossa visão e, assim, desviar dos falsos ídolos que nos oferecem frívolas salvações. Vamos nos arvorar por esse caminho, nos livrar dos grilhões, nos curar das inconsciências. Levantemos nossas cabeças para nos esquivar dos anúncios luminosos. Ergamos nosso olhar para a luz que vem dos igapós, furos, malacaxizeiros e igarapés. Escutemos o canto raro do uirapuru e o zumbido de mangaua. Contemplemos a nobreza das harpias — a fadiga ocular causada pelo céu dos computadores nos impedia. Vamos ver aquilo que existe nos beiradões: socós, bererés, garças, gaviãs, anus sobrevoando os jauarizeiros. Essa luz, natural como o bico da pipira, será capaz de iluminar o que há dentro de nós.

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