
Ditos, mentiras e neuroses: o lugar da democracia racial no pensamento de Gilberto Freyre
Estou aqui escrevendo para a editoria Cultura e Territórios com a temática desta edição, batizada de Mitos. Houve um pedido especial, relacionado a um tema recorrente das minhas considerações, algo que o conterrâneo Gilberto Freyre ajudou a erigir: o então tétrico mito da democracia racial. Porém, refletindo sobre o mito em si, principalmente a partir de Leda Maria Martins, uma das nossas intelectuais mais importantes, não poderia continuar usando a expressão para equipará-la a farsa, mentira, engodo, embuste. Afinal, Leda nos ensina que o mito não é apenas fantasia, mas um dispositivo de saber que traz a memória ancestral dos africanos e seus descendentes, da mesma forma que representa um elo com o sagrado, seus fundamentos e suas forças operantes, estando em constante atualização nas práticas culturais. Poderia usar diferentes autores e autoras que escreveram sobre a pobreza de julgar o mito como mentira e expor sua profundidade para diversas culturas. No entanto, como Martins é a que mais se aprofunda na cosmopercepção afro-indígena deste lugar, a tomei como exemplo.
Proponho então tratar a ideia de democracia racial como uma neurose, me remetendo diretamente a Lélia Gonzalez, outra autora negra brasileira, que, munida de teorias da psicanálise, nos mostra como o racismo pode ser tratado como um problema não somente de ordem econômica e social, mas como fenômeno cultural profundo, estruturante da subjetividade brasileira. Para ela, o país vivia em constante negação da presença afro-indígena no país, apagando suas diversas contribuições, espelhando-se na cultura europeia e praticando a ideologia do branqueamento, inclusive como política pública. Ao mesmo tempo, nossos mais nobres intelectuais teorizavam sobre o homem cordial e a malfadada democracia racial: seres dóceis e bondosos, que ensinaram ao mundo o convívio pacífico entre diferentes origens étnicas, das mais variadas cores e culturas. Abdias do Nascimento, por sua vez, nos alertava, um tempo depois, sobre o genocídio do negro brasileiro, o que o fez, inclusive, ser censurado, à época, pelo “absurdo” que era usar essa expressão para definir a realidade de tal povo. Então Lélia, por essas e outras, só poderia chegar a uma conclusão: nosso país vive uma neurose coletiva! A contradição entre a violência simbólica e física a que as populações não brancas estavam submetidas, a partir do racismo estrutural e estruturante, e o que se escrevia e se propagava internamente e para o mundo era de um abismo sem fim.
Mas aqui talvez eu arrume um salvo-conduto para usar mito como mentira, como propôs Roland Barthes, mostrando que ele pode ser criado a favor de uma ideologia, virando discurso político e servindo para dominação e manutenção de hierarquias, assim como para ocultação de contradições sociais e de relações de poder. A função simbólica e que reflete os valores profundos de determinada sociedade dá lugar a uma cilada conceitual, pois, ao invés de trazê-los à luz, tentando dar sentido à existência, leva-os a uma tentativa de sublimação do problema.
Vale dizer que ele é herdeiro de um outro “mito” ou neurose que surge no século XIX para “explicar” o que é o Brasil e os brasileiros: o da gênese do seu povo a partir do encontro das três raças. Estas teriam se encontrado e fundido de forma harmoniosa e pacífica, gerando uma nação mestiça, sem dúvidas uma inspiração direta, intimamente ligada à teoria de Freyre. Essa linha teórica veio aos poucos dando possibilidade de espelhamento a outra tendência do mesmo século, a eugenia, que pregava a superioridade das raças brancas, de origem europeia, sobre todas as outras do planeta. Um dado curioso é que o jovem Freyre chegou a simpatizar com tais teorias, como nos mostra o livro de Pallares-Burke. E, como diferentemente se coloca, Freyre sendo um grande opositor e salvador da pátria ao renegar as teorias pseudocientíficas da superioridade branca, acredito que elas estão intimamente ligadas. Fazendo uma analogia com uma expressão muito comum hoje na política que se opõe à extrema direita, o lusotropicalismo freyreano é uma eugenia que come de garfo e faca, quase como um filho bastardo.
Bastardo porque, visando responder às teorias eugenistas que colocavam todo povo mestiço como degenerado, Freyre acabou criando uma narrativa fantasiosa e mantenedora do status quo das classes dominantes brancas. Sendo um braço do colonialismo/da colonialidade, a teoria freireana deu as bases para a criação da conhecida ideia de “democracia racial” que teria sido alcançada graças à benevolência do povo português, muito diferente dos racistas anglo-saxões, pois, como defende Castelo, “(…) afirmava plasticidade social, versatilidade, apetência pela miscigenação, ausência de orgulho racial” dos portugueses. Dessa forma, deu protagonismo ao colonizador, legitimando-o e suavizando todo o processo de violência extrema da colonização.[Text Wrapping Break]
O lusotropicalismo, de acordo com Castelo, já se apresentava de forma nítida desde o primeiro livro de Freyre, Casa-Grande & Senzala, de 1933, e é basicamente definido por três características dos portugueses, “a mobilidade, a miscibilidade e a aclimatabilidade”. Segundo Freyre, essas qualidades explicam o “sucesso” do empreendimento colonial português, apesar de originário de uma nação nanica e até então inexpressível. Os portugueses herdariam a mobilidade dos judeus, um dos seus povos formadores, e chegariam até lugares longínquos, como África, Ásia e Américas. Já a inclinação à miscigenação seria uma consequência do período em que a Península Ibérica foi dominada pelos Mouros, povos africanos islamizados, e “suas estreitas relações sociais e sexuais”. A terceira suposição de Freyre seria uma adaptação superior ao clima dos trópicos, já que Portugal teria uma condição climática mais próxima dos lugares abaixo da linha do Equador do que com o resto da Europa. A defesa de um estado de “democracia racial” no Brasil viria a partir de uma série de conferências feitas na década de 1940 na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, em que se apresenta “o Brasil como um exemplo para o mundo em questão de tolerância religiosa, étnica e social”. Essas falas viriam a ser publicadas posteriormente como Interpretação do Brasil:
[o livro] faz eco das discussões correntes na década de 40 sobre a especificidade da América Latina em geral e do Brasil em particular, em matéria racial, em comparação com o que se passava nos Estados Unidos e na Europa. A colonização ibérica é apontada como o fator diferencial que transmitiu ao Brasil a sua inclinação para a democracia racial. O catolicismo português e espanhol teria contribuído para o estabelecimento de relações sociais mais equilibradas entre gentes de diversas proveniências e dado origem a sociedades racial e culturalmente miscigenadas. Por essa razão, os conflitos eram superados mais facilmente.
Esse eufemismo em relação à violência do processo colonizador também se expande para uma desracialização fictícia de nossas relações sociais, criando, posteriormente, o mito da democracia racial, que, exaltando o processo de mestiçagem, fez com que negros e brancos, e até mesmo os povos originários, desaparecessem como num passe de mágica. “Aqui ninguém é branco” — expressão que, de tão comum e absurda, virou título de um livro da pesquisadora Liv Sovik — ou “todo mundo tem sangue negro” viraram um mantra repetido aos quatro ventos, ininterruptamente, sendo o mito de origem da civilização brasileira, o encontro das três raças (e a consequente desracialização da nação mestiça), narrado a partir do “descobrimento”.
Teríamos muitos questionamentos e argumentos para levantar ainda, no entanto, os caracteres estão se esgotando, infelizmente. Então deixo para os leitores a seguinte reflexão: vocês acham que foi por acaso que a obra intelectual de Freyre foi celebrada e utilizada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, e pela ditadura empresarial-militar de 1964 a 1985, além de ter atravessado os mares e continentes e ser utilizada por Salazar, ditador português, para justificar e continuar o colonialismo em África?

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