
Bombardear e transar: banalidade e lascívia em Deyson Gilbert
A gênese do trabalho de Deyson Gilbert é aquele hiato entre o que já vimos e o que ainda não conseguimos formular. É como se suas peças estivessem um passo à frente do olhar, desmontando o perigoso e contumaz automatismo da visão e, com isso, reorganizando nossa percepção. Nada em sua produção permite, ou sequer solicita, interpretação imediata. Há harmonia, mas há também ruído. E não esse ruído fragmentado que conhecemos tão bem. Um ruído demorado e positivo. Um alívio.

Esse sopro de vida se dá a partir da manipulação de frequências raras, um tipo de energia estética que não se revela na superfície, mas na vibração subterrânea de materiais, imagens e protocolos. Os trabalhos de Gilbert parecem escutar algo anterior ao gesto e posterior ao objeto, num campo no qual o visível não é mais garantia de presença e o invisível já não é sinônimo de ausência. É desse território oblíquo que emergem as obras que vêm construindo uma trajetória sólida na arte contemporânea brasileira, caracterizada por meticulosidade e inquietação guiadas por forças que se insinuam mais do que se declaram. A exposição Thanateros: abstruction_img_666.gif, que esteve em São Paulo na Galeria Martins&Montero, é prova disso.

Thanateros, neologismo que funde desejos antagônicos — Thanatos, personificação da guerra na mitologia grega, e Eros, o famoso deus do amor —, funciona como um deslocamento, fazendo a semântica vibrar num território no qual contrários passam a se tocar. “Não é fortuito”, escreve Marcela Vieira no texto curatorial da exposição, “que operadores de paixão, como o erotismo e a morte pelo crime, estejam juntos em composição, literalmente colados um ao outro, enredando, mais especificamente, devassidão e suplício. (…) Porém a morte aqui representada não é a natural, e sim a morte de guerra, provocada pelo homem-animal-político capaz de levar o corpo à dimensão do sacrificial, do vitimal e do sagrado”.
Ou seja, desejo, suplício, crime, sacrifício, todos esses impulsos deixam de ser opostos e passam a operar como variações de um mesmo campo de força, sob a égide de matérias cujo intuito é enroscar e enroscar, fazer da violência um prolongamento do ímpeto e do erotismo uma fagulha que ilumina, mesmo no escuro, o que o corpo suporta.
“O gênero e o sexo masculino”, continua Vieira, “prevalecem nas representações visuais, sugerindo o registro fálico que se evidencia pelas já mencionadas hastes rígidas e verticais que regem o espaço, e também pelas conotações bélicas e referências homoeróticas, que, no fundo, não passam de uma insistente reiteração do masculino.”
Essas hastes que ela cita assumem a forma de falos em desvio. Rígidos e afirmativos, mas nunca plenamente retos. São lanças que desejam a verticalidade absoluta, embora carreguem, em cada inclinação, o lamúrio da própria torção. A rigidez não é o cume do Homo erectus, mas a evidência do esforço quase desesperado para defender uma posição. As hastes-falos, a priori símbolos de domínio, em vez de consolidar uma força pela via da repetição, expõem toda a sua exaustão. E nesse ponto, quando o masculino se dobra sob o peso do próprio gesto, o trabalho abre espaço até para outras vibrações que pulsam logo abaixo da superfície.

O subtítulo, abstruction_img_666.gif, nos apresenta um pequeno enigma, se fazendo de arquivo encontrado num canto obscuro de computador. Os nomes escolhidos e a opção pela grafia do universo cibernético ajudam a jogar luz sobre algo que Gilbert faz muito bem, que é suspender certezas. E uma das certezas suspensas aqui é essa automação do olhar, um inimigo cujo poder bélico é tão forte quanto seu poder de sedução. A ironia é brutal, pois trata de demonizar uma característica que está em nós e é evocada diariamente. A conta é simples: o diabo, o profano 666, cabe, sim, no nosso olhar. E o frio na espinha que isso causa é real.
O ponto é que a banalidade da guerra faz com que ela se reproduza e siga acontecendo em proporções cada vez maiores, repetindo e até piorando a história; em contrapartida, a banalidade do sexo causa saturação no olhar e nos sentidos, esvaziando-o dos ímpetos da excitação e dos gemidos do gozo.
Essas obras traduzem tais instâncias, Thanatos e Eros, manifestando um quê de organismo e um quê de máquina, mas também algo que escapa a essas categorias. Como se fossem seres provisórios, atravessados por uma pulsação não humana, temos uma cadência que se aproxima do mineral e do elétrico. Esse caráter de subversão existencial, embora não explicitado, se fez presente em Thanateros. O trabalho ali não descrevia o mundo, ensaiava outro. E esse ensaio parecia operado simultaneamente por precisão técnica e descontrole simbolista, como se um protocolo de laboratório tivesse sido atravessado por um feitiço.


Cada obra, dessa exposição e de todo o já extenso corpo de trabalho de Deyson Gilbert, funciona como um fragmento de linguagem que ainda não encontrou gramática. Entendendo esse não entender e sabendo que o mundo continua cheio de zonas opacas, forças que ainda não têm nome e cintilações discretas e espalhafatosas, fica evidente que Thanateros e Gilbert não dão nome aos bois, mas delatam a falência do pensamento fálico, a puerilidade de toda e qualquer guerra e a instrumentalização frígida do erotismo.

Ecoam, na mesma medida, o estampido das bombas e o silêncio das transas. Pois tudo isso se resume à falta de tesão e ao medo infelizmente não paralizante de brochar quando a hora H, do sexo ou da guerra, enfim chegar.
Gostou do artigo? Compre a revista impressa
Comprar revistaAssine: IMPRESSO + DIGITAL
São 04 edições impressas por ano, além de ter acesso exclusivo ao conteúdo digital do nosso site.
Assine a revista