
Chico da Silva: texturas do impossível em cores que sonham o mundo
(Exclusivo Amarello 54 edição digital)
Chico da Silva (1910-1985) nasceu entre rios e floresta, onde o tempo tem a lentidão da seiva. Da infância no Acre ao vento salgado de Fortaleza, atravessou o Brasil carregando um repertório de vivências e visões que passava despercebido a quem nele batia o olho. O que desenhava nas paredes caiadas das casas de pescadores não era o mundo, mas aquilo que o mundo escondia. O carvão das fogueiras, os tijolos partidos, as folhas e os pigmentos improvisados foram seus primeiros pincéis. Como entidades vivas, fizeram brotar das paredes criaturas ancestrais: peixes alados, pássaros vigilantes, serpentes e dragões que pareciam ter emergido das águas turvas da memória amazônica.

Foi um acaso, ou o destino disfarçado de acaso, que fez com que Jean-Pierre Chabloz (1910-1984), artista e crítico suíço exilado no Ceará, se deparasse com aqueles trabalhos espalhados em muros e acabasse se deslumbrando com aquelas figuras desenhadas aqui e acolá. A partir desse encontro, Chico ganhou tinta, papel e novos horizontes. O estrangeiro reconheceu no pintor de Alto Tejo a expressão de uma inteligência pictórica original, movida por algo que escolas de arte não conseguem ensinar: a necessidade de transformar a experiência da vida em pintura, de fazer do mundo um símbolo.
Nas guaches de Chico, as linhas têm movimento e o tempo se dobra; as cores vibram, respiram, se multiplicam em teias minuciosas de linhas e tramas. Cada peixe parece conter um universo, cada olho é também uma estrela. Suas criaturas nascem de um território onde a lenda e o sonho são tão verdadeiros quanto o corpo da paisagem. A selva, o mar e o céu se confundem, e é nessa confusão boa que reside a força de sua pintura.

Para Chabloz, Chico reinventava a própria ideia de pintura. O suíço via em seus quadros uma alquimia de símbolos, uma tentativa de reorganizar o caos do mundo pela cor. Neles cabiam a infância e o mito, o rito e o delírio, a psicologia e a poesia. A exuberância que observava o real não para reproduzi-lo, mas para redefini-lo.
Nos anos seguintes, suas obras circularam por capitais brasileiras e europeias, em exposições que o colocaram ao lado dos grandes nomes da arte moderna. De Fortaleza a Lausanne, de Paris à Bienal de Veneza, Chico da Silva mostrou que a imaginação também é uma forma de conhecimento. Seu universo, forjado fora das academias, dialoga com o surreal e o simbólico, com o sagrado e o cotidiano. É uma arte popular cuja popularidade não simplifica, e sim complexifica, partindo do local para alcançar o universal.




Durante um tempo, o sucesso comercial e o interesse da crítica fizeram de Chico uma figura de destaque. Depois, vieram os esquecimentos, aquelas cruéis curvas da vida que não fazem sentido e têm como destino os silêncios da história. Mas sua pintura nunca deixou de brilhar. Suas criaturas continuam a nos observar, como se guardassem o segredo de um Brasil mais antigo e mais vasto do que aquele que cabe nos livros e na atualidade.
Hoje, seu nome retorna com força. O resgate contemporâneo reconhece em Chico da Silva alguém que abriu caminhos para modos de ver e apresentou ao mundo um devir artístico que não se subordinava ao cânone. Sua obra desafia as fronteiras entre arte erudita e popular, entre natureza e cultura, entre homem e mito. A história da arte do país também se escreve nas marés de Fortaleza, nos pigmentos improvisados de um pintor autodidata e nas narrativas orais que sobrevivem entre o delírio e o desenho.


Ver um quadro de Chico da Silva é sentir a possibilidade do impossível e se conectar com sua textura e suas cores. É perceber que, entre o delírio e a realidade, existe uma terceira margem, a da imaginação, na qual Chico construiu sua morada definitiva.
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