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Obra de Chica da Silva, Sem título
#54EncantoLiteratura

É urgente viver encantando

por Helena Cunha Di Ciero

Tudo começou com o pai de Clara. Uma sexta-feira por mês, saíam para terem aula de realidade. O pai a levava no cartório para ver a burocracia, no fórum do centro, ficavam horas na fila do xerox, só para a menina entender que a vida real era cheia de pedaços sem graça. “Acontece que a vida é morna, filha”, ele dizia. Ao final, tomavam sorvete e tudo que parecia tedioso ficava divertido. 

Benedito, seu pai, era um homem da ciência, estudioso, teórico inveterado, que passava o dia de olhos abertos. Mas o homem veio do interior, onde teve aulas com uma benzedeira, por isso, em alguns domingos, tirava quebranto de Clara fazendo o sinal da cruz na testa, enquanto rezava baixinho. Seus olhos lacrimejavam, o que era sinal de limpeza espiritual. Nesse lugar, a menina se sentia protegida de todos os males, amém.  

As aulas de realidade pareciam querer contrapor o homem místico que Benedito tentava esconder com sua intelectualidade. Quando era dia de Santo Antônio, o pai dizia para a filha colocar no sereno uma clara de ovo com água e, antes de amanhecer, ver no fundo do copo o nome do seu marido. Ela acordava contente no dia seguinte, com a certeza de que seria feliz no amor e que havia um nome traçado no céu reservado para ela. Cresceu assim, encantada tanto com a realidade quanto com seu lado místico. Sua compulsão começou na infância.  
 
Seu primeiro amor a fazia querer correr para a banca de seu Toninho, onde comprava a revista Simpatias de Amor, e executava com fidelidade cada ritual sugerido. Ela tinha como assistente o porteiro do prédio, Francisco, que a ajudava a enterrar no jardim do térreo bananas encharcadas com mel e recheadas com sete papéis dobrados com o nome do menino da classe de quem ela gostava. 

A mãe, pragmática, legara à filha a herança do mesmo mal. Vivia atrás de astrólogas, cartomantes, leitoras de mão, e quanto mais distante, melhor. Sua favorita era Safira de Mariporã.  

Um fruto não cai longe do pé, e a menina cresceu correndo de cartomante em cartomante, leitora de borra de café, taróloga, videntes etc. Tudo era uma diversão, uma vida só era muito pouco, uma vida era também demais. Era preciso algo mais na existência, alguma purpurina.  

Chegava a se arrepiar quando as tarólogas estendiam a toalha de feltro roxa com uma mandala dourada desenhada no meio, cristais e balas 7 belo no canto lateral (oferendas para o anjo da guarda). De tanto ir, aprendeu o significado das cartas, de modo que não temia a carta da morte, e sim a da torre. 
 
Certa vez, quando terminou um namoro, chegou a ir em mais de 30 consultas diferentes para saber se o amor voltaria ou não. E listou, numa planilha de Excel, os sins e nãos, montando um gráfico das possibilidades de uma possível volta do rapaz. Divertia-se, ainda que na fossa, ao mesmo tempo em que aguardava o remendo de seu coração. A cartomante Déia errou na previsão quando disse que em março eles se casariam. Clara, que nunca foi de levar desaforo para casa, foi lá tomar satisfação logo que chegou abril. 

Foi em maio do mesmo ano que conheceu a senhora russa que a recebeu na sala e a levou ao quarto dos fundos, ao som do CD de música eslava, enquanto abria o baralho da cigana russa. Seus dois gatos se espreguiçavam pelas imagens, Vera fumava sem parar, dizendo que não podia fumar na sala pois Dalmo, seu marido, estava no balão de oxigênio no quarto e podia fazer mal para ele. Clara, que sempre gostou de nicotina, a acompanhava com lealdade. 

Quando o pai de Clara adoeceu, quis ensinar a filha a benzer. Ela não aceitou. Foi a única coisa que ele ficou sem lhe ensinar. Mas ela não poderia aprender, pois assim teria que admitir que estava pronta para viver sem o pai. Ele partiu do mesmo jeito, deixando-a em busca de respostas e de centros espíritas. Clara finalmente achou um perto de casa e, enquanto aguardava sua vez, contou sua história para as outras pessoas que também aguardavam na fila. Elas a abraçaram e disseram que sua dor ia passar. Quando finalmente ficou de frente para uma das entidades, ouviu que seu pai estava bem e tomando sopa com outros espíritos. Revoltada, pois tinha sopa em casa, a moça foi ao candomblé, onde recebeu muitos rituais dificílimos de cumprir, que envolviam velas gigantes que ficavam acesas no box do banheiro — para evitar acidentes, rodeadas por uma bacia de água — e que a deixavam assustada quando ela ia fazer xixi de madrugada.  

Entre folhas de mamona para rituais de São Jorge, arroz para Jesus e oferendas para Cosme e Damião, o tempo foi passando e a dor mudando de um altar visitado diariamente para uma prateleira pesada em seu coração, visitada de vez em quando, na hora em que a saudade batia. 

Um dia, a mãe disse a ela: “Me arrume uma vidente. Quero saber se o meu ex-namorado, Olavo, está vivo”. Clara estranhou, pois sabia que Olavo havia morrido há mais de vinte anos. Foi nesse segundo que entendeu que o Alzheimer estava chegando na sua casa feito um encosto e que não havia como lutar — mesmo tendo colocado o feng shui direitinho na área da saúde, conforme orientado pela radiestesista. 

Clara cuidou, amou aquela mãe, mesmo com a realidade lhe dando a pior de todas as aulas, a de ser esquecida por quem mais a amou na vida. A mãe partiu depois do dia de nossa senhora de Fátima e ainda não mandou nenhum sinal, mas a filha de seu Benedito e Maryjane não desiste, e encontrou uma médium no Instagram que trabalha com apometria e está aguardando seu sinal de que não está só. Todo dia ela reza para não deixar de acreditar em nada, mas está difícil. Só quem é clarividente pode ver que sua aura é clara e que sua capacidade de sonhar é seu talismã de resistência. 

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