
Oralidade, tradição, sons e ritmos: formas de reencantamento do mundo
Para a antropóloga afrocêntrica Marimba Ani, a grande tragédia da humanidade já aconteceu: a maafa, como ela chama o holocausto dos africanos na época das colonizações europeias. Dessa época, além de genocídios, torturas e toda a sorte de violências, antes impensáveis, contra a humanidade, também houve o início da exploração sem precedentes da natureza.
Na sua teoria dos berços, o polímata senegalês Cheikh Anta Diop defende que a Europa seria da ordem da escassez, com seu frio e suas poucas terras, em sua maioria não férteis, e que isso explicaria sua avidez por recursos naturais e humanos, assim como a violência e a dissimulação aplicadas para a conquista. Natureza e humanidade, corpo e mente separados, como se não houvesse complementaridade ou interação entre essas partes, como se realmente fizesse algum sentido serem partes.
Para Achille Mbembe, o início da colonização e da escravidão que a Europa aplicou a outros povos foi o início da necropolítica, que, de forma resumida, significa o poder de matar do Estado, que decide quem vai viver e quais corpos são descartáveis. A partir de um etnocentrismo neurótico, apoiado e justificado por uma fé cristã, tem-se o processo de genocídio de povos negros e indígenas.
Isso foi apontado também, de forma muito corajosa e pioneira, em plena ditadura militar, por Abdias do Nascimento, em sua obra O genocídio do negro brasileiro, escrito em 1978. O texto foi pioneiro, porque, até então, ninguém havia usado o termo para explicar a situação da população negra, uma vez que ainda se tentava tapar o sol com a peneira com o mito da democracia racial. Por isso o autor foi perseguido e ficou de fora da comissão de intelectuais brasileiros que iria ao festival Festac ‘77, ou Segundo Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana, que aconteceu em Lagos, na Nigéria. Mesmo assim, ele foi por conta própria e carregando várias impressões feitas de maneira independente, entregando-as a várias delegações africanas, como forma de denunciar o racismo no Brasil e cometido pela comissão que o censurou.
Abdias também nos mostra que o racismo é um monstro com vários tentáculos, e um deles é a tentativa de aniquilação, deslegitimação ou invisibilização dos saberes de povos não europeus. Isso, mais tarde, seria chamado de epistemicídio por Boaventura de Souza Santos, mas, na minha humilde opinião, foi expandido e complexificado pela filósofa Sueli Carneiro.
Para a autora, a questão é muito mais profunda e um processo contínuo. Ela assim o explica em sua tese:
Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade de aprender, etc.
Afinal, para a conquista ser de fato algo concreto, a mente dos subalternizados precisa também ser colonizada, não havendo vitória possível, além da aniquilação física, se não estivesse amparada pela tentativa de morte de culturas, subjetividades e conhecimentos ou formas de fazer de um povo. E se toda essa gama de sociabilidades estivesse construída de forma a englobar um todo cósmico? Plantas, minerais, animais diversos, espíritos e o universo em uma estrutura pluriversal, formando um todo. E se a ideia agora fosse o ser humano como medida de todas as coisas? Sua superioridade como guia à exploração e ao consumo desenfreado para a satisfação pessoal e a acumulação primitiva de bens — a natureza agora é algo a ser conquistado, e não mais parte de nós.
Aqui eu entro no meu argumento principal, o da produção do desencantamento do mundo a partir do que se constituiu enquanto saber, ciência e razão pela ótica ocidental. Ao se desconectar da natureza e das coisas, da metafísica e do universo, o eurocentrismo produziu uma desertificação do conhecimento ancestral, assim como a escassez do mundo. A combinação do cristianismo com o eurocentrismo e o capitalismo tentou apagar toda a magia do mundo. A ideia judaico-cristã de domínio total da natureza, e essa como simples provedora da humanidade, e não como parte de um todo, vai produzindo o desencantar da vida, assim como vai empreendendo uma cruzada incansável para eliminar todo o caráter místico que sua própria religião sustentava em tempos passados. Em menor proporção, isso também vale para o islã, que ainda preserva um contato com o que não se vê pelo sufismo. O eurocentrismo, etnocêntrico, julgou arrogantemente estar acima de todos os outros povos do planeta, assim como buscou, posteriormente, separar mente e corpo, desvalorizando um dos elementos necessários para a produção de saber e conexão com a vida.
Para o ecologista, etnobotânico e filósofo David Abram, essa separação entre os humanos e o mundo “natural” se deu pelo cogito cartesiano e pelo sistema de escrita alfabética, pois o alfabeto decompõe a linguagem falada em unidades sonoras sem significado específico, as letras, e as associam a símbolos visuais que nada têm a ver com as coisas que eles representam. Ou seja, causam uma grande abstração na forma de entendimento do mundo, que precisa de um grande esforço para ser realizado, ato que tira a atenção da sensorialidade existente na relação com a natureza.
Seu pensamento começa a ser construído a partir da experiência de pesquisa de campo realizada com xamãs de culturas oralizadas do sul da Ásia. A oralidade, presente em todas as culturas indígenas do mundo, se vale do gesto, ou seja, do corpo, e do som para constituir sua forma de comunicação. Em seu livro The Spell of the Sensuous (O feitiço do sensível, em tradução livre), Abram destaca como a oralidade está diretamente ligada a ritmo, sons e movimentos da natureza e como o corpo faz parte dessa construção.
Não por acaso, Oyèrónkẹ Oyěwùmí, em sua obra A invenção das mulheres, argumenta que o Ocidente é ocularcentrista em suas cosmovisões, argumentando, então, que esse termo é inadequado para se referir à percepção do mundo pelos iorubás e por outras etnias africanas, sugerindo a palavra cosmopercepção. Para a socióloga nigeriana, a maioria das culturas em África tem uma relação muito mais profunda com o sentido da audição, o que constrói uma relação diferente com a natureza e o cosmos, inclusive no sentido de acreditar em coisas que não se pode enxergar, abrindo uma conexão com a metafísica. Oyěwùmí também liga a construção dessas cosmopercepções ao fato de a oralidade ser o principal meio de se comunicar e transmitir conhecimento, trazendo o argumento reforçador das línguas africanas serem tonais.
Assim, percebemos que a destruição da natureza a partir de sua exploração extrativista e imparável, produzindo o aquecimento global e a morte de outros seres e saberes, vai nos levar ao fim do mundo. Não por acaso, a filósofa quilombola Katiuscia Ribeiro sugere que “o futuro é ancestral”, seguida por Ailton Krenak, pretendendo o replantio das epistemes e práticas afro-indígenas para que a própria ideia de futuro continue existindo enquanto possibilidade, para que possamos reencantar o mundo.
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