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Eterno transe

por Leticia Lima

Desde os primórdios há transe. Junto com o homem nasceu seu espírito e sua insaciável sede de buscar algo mais, de ir além. Quando a música surgiu, no bater das palmas, dos pés na terra, no bumbo do tambor rudimentar, o homem descobriu uma maneira de chegar ao transe, uma ferramenta essencial para exceder seu alcance normal e abrir um portal – um canal de comunicação com os deuses, um meio para a encarnação dos espíritos dos mortos, um instrumento para se ouvir a sabedoria da Terra Mãe e se obter o poder da cura.

Todas as culturas têm alguma forma de transe em sua história. Mesmo a ocidental, moderna, cética, lentamente reconhece-lhe a importância para nosso bem-estar e tenta redescobrir e valorizar um pouco da sabedoria dos antepassados. Olhe bem ao redor e verá inúmeros estúdios de ioga e meditação, clínicas que oferecem hipnose para tratar as mais diversas aflições, e mesmo jovens se perdendo no ritmo da música trance, não chamada assim por mera coincidência.

Nas savanas semiáridas da África do Sul, os San há milênios fazem a dança do transe, em que seus sábios e xamãs se deixam levar pelo clamor dos tambores e entram em um estado de enlevação para curar os doentes da aldeia. Os dervixes, uma ordem islâmica na Turquia, desenvolveram uma dança em que rodopiam por horas no mesmo lugar, sem ficar tontos, e sem cair. Assim se aproximam de seu Deus. Talvez mais impressionante seja o espetáculo do festival de Thaipusam, no sudeste asiático, para o qual os devotos raspam a cabeça, entram em transe e enfiam dezenas de anzóis e espetos na pele até perfurar bochechas, línguas e costas – tudo aparentemente sem dor.

E o nosso próprio João de Deus, ou John of God, que, de tão famoso, já foi até assunto de um documentário da inigualável Oprah Winfrey: um médico espírita que recebe a encarnação divina e faz dezenas de cirurgias, curando as pessoas de todo tipo de doença, da depressão ao câncer.

Mas o que, enfim, é transe? Uma definição abrangente diria talvez que se trate de uma variedade de processos, técnicas, modalidades e estados de consciência, que podem ocorrer voluntária ou involuntariamente, e que estão associados à meditação, à magia, à fé ou ao movimento. A palavra vem do latim transire – transitar, porque o sujeito se desloca para além de sua condição “normal” de lucidez.

Transe também passou a ser intimamente relacionado, no imaginário popular, às drogas. Não é à toa. Os incas, por exemplo, mastigavam folhas de coca; os xamãs mundo afora consomem peiote e ayahuasca (santo daime); e os vikings comiam cogumelos alucinógenos para entrar em um transe furioso antes das batalhas. Mais tarde, durante a era dos hippies, as experiências com alucinógenos buscavam expandir os limites da percepção.

A droga é, porém, apenas um veículo para aquele fim, assim como a dança e a música. O transe em si pode ser alcançado sem esses artifícios, apenas estimulando-se diferentes ondas mentais, que são tipos de afluências eletromagnéticas produzidas pela atividade das células cerebrais. A periodicidade dessas ondas são medidas em ciclos por segundo e muda dependendo de nosso estado de consciência, ou seja, se estamos alertas, concentrados, relaxados, meditando, e assim por diante. Há quatro frequências de ondas cerebrais: beta, alfa, teta e delta. É entre alfa e teta que se chega ao transe.

Mas, a começar pelo início, em beta – entre 21 e 14 ciclos por segundo – estamos bem despertos e atentos: bom para a concentração, para o estudo e para a prática de esportes. A atividade mental está em alta, e recebemos muita informação por meio dos cinco sentidos.

A próxima frequência é alfa, quando o cérebro emite ondas vibratórias entre 14 e 7 ciclos por segundo, comuns antes do sono profundo e antes de acordarmos totalmente. Em alfa, tem-se uma percepção extrassensorial e a consciência se expande, resultando em uma sensação de paz e bem-estar, e em um relaxamento intenso. A mais baixa é delta, entre 0.1 e 4 ciclos por segundo – o estado de sono pleno, coma profundo ou anestesia geral.

Mas a que nos interessa aqui é teta, entre alfa e delta, quando as ondas cerebrais vibram abaixo de 7 ciclos por segundo. Neste nível, a atividade mental reduz-se quase ao patamar do sono e a realidade se confunde com elementos do subconsciente. Sentimo-nos ir além dos limites do corpo e, portanto, podemos alcançar o subconsciente com mais facilidade – através, por exemplo, da hipnose –, curar doenças e até nos abrir como veículo de comunicação para deuses e divindades.

Sabe-se também que, por meio do que é conhecido como ressonância forçada, sons podem ajudar uma pessoa a chegar em alfa ou teta: um processo no qual a frequência de uma força motriz (o ritmo da música, da percussão, da voz) se iguala à das ondas cerebrais. Ou seja, uma fonte externa começa a produzir sons na mesma frequência das ondas cerebrais que se deseja atingir. Talvez nossos ancestrais ignorassem o conhecimento formal desta técnica, mas já se valiam do poder da música e da voz para induzir ao transe.

Com música, hipnose, meditação, dança, movimento ou com a ajuda de uma substância química qualquer, o fato é que “estar em alfa”, ou entrar em transe, faz parte do cotidiano e da história da humanidade, e assim permanecerá, contanto que os indivíduos continuem querendo ir além.