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#54EncantoCultura

Os ribeirinhos e as lições da floresta

por Thiago Thiago de Melo

Obra de Chico da Silva, Sem título. Final da década de 1960.

Cresci ouvindo uma história que, desde menino, me acompanha e me norteia. Um jovem senhor ribeirinho, nas matas que beiram o rio Andirá, no interior do estado do Amazonas, caçava com seu genro. Depois de terem capturado porcos-do-mato, que seriam alimento para sua família pelos dias seguintes, se preparavam para voltar à casa quando, de repente, ficaram desorientados. Não achavam o caminho, tão habitual para ambos, sobretudo para o mais velho, experiente caçador. Este, após idas e vindas inúteis, andando em círculos, o dia escurecendo, resolveu pedir ao curupira — esse ser encantado da floresta — que lhes mostrasse a trilha a percorrer: “Pare com isso, curupira, nos deixe andar. Amanhã volto aqui e trago a cuia com cachaça e o tabaco para você. Vamos, nos mostre o caminho”. O genro, incrédulo, acompanhava sem grandes esperanças, com a caça sobre os ombros. Em pouco tempo, estavam novamente na rota para a beira, onde sua canoa os aguardava. “Foi o bicho, foi o curupira quem malinou de nós e depois nos livrou”, sentenciaram sem titubear. 

Desde cedo, intuí que os ribeirinhos têm crenças e saberes tão distintos daqueles dos cidadãos urbanos do Brasil. Essa gente que vive em comunhão com a floresta, às margens dos rios e das cidades, tem muito a ensinar sobre a invenção de um país que honra e respeita a natureza. Mas, afinal, o que queremos dizer quando denominamos essa população “povos da floresta”? Quantos “brasis” existem no Brasil? Onde estão os grupos de seres humanos que recorrem ao mistério para atingirem seus objetivos práticos? Essas indagações passam por minha cabeça quando viajo pelo interior da Amazônia, quando navego o rio Madeira ou o Paraná da Eva, o furo do Pucu ou a cabeceira do Itapecuru. Nessas circunstâncias, torna-se claro que o capitalismo não conseguiu varrer do mapa todos os povos que vivem em contato permanente com as águas e que creem — certezas inacreditáveis — no sobrenatural como parte fundamental do dia a dia. Suas cosmovisões resistem ao avanço da lógica ocidental que transforma tempo em dinheiro. 

Tais pensamentos dobram de tamanho quando reflito sobre o que Max Weber escreveu em seu clássico texto A ciência como vocação. Há mais de cem anos, o sociólogo alemão afirmou que uma das consequências mais poderosas da super racionalização moderna seria o desencantamento do mundo, ou seja, a vitória do cálculo e da burocracia sobre a magia e os espíritos. O que os seres humanos que vivem no reino poderoso das águas, em convívio com as plantas e com os animais, pensariam a respeito da intelectualização do mundo?  

Nas últimas décadas, assistimos, no Brasil — e, por que não dizer, no planeta? — a uma crescente e admirável valorização do pensamento indígena. A Constituição Brasileira de 1988 deu amparo legal ao reconhecimento das terras e dos saberes dos povos originários. Na região da Amazônia Legal reside a maior parte dos povos indígenas do país — quase um milhão de indivíduos habitam nos seus nove estados: Acre, Amazonas, Pará, Amapá, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Mato Grosso e do Maranhão. É uma área de mais de cinco milhões de quilômetros quadrados. Mais da metade do território nacional. Muitas nações indígenas vivem ali há milênios e são falantes de centenas de línguas, o que torna o Brasil, por esse prisma, um país — além de belo e complexo — diverso e plurilinguístico.  

O Decreto nº 6040, instituído em 2007, reconhece a existência de mais de vinte segmentos conhecidos como povos e comunidades tradicionais. São caboclos, catingueiros, extrativistas, ilhéus, pantaneiros, ciganos, raizeiros, ribeirinhos, seringueiros que têm modos próprios de organização social e estão em contato permanente, ancestral e visceral com seus territórios. A conservação de nossa riquíssima biodiversidade passa necessariamente pelas maneiras como esses grupos mantêm-se vivos, cultural e socialmente. 

Penso nos ribeirinhos da Amazônia e na sua contribuição para a manutenção de práticas milenares de ser e estar no mundo. Não há número exato dessa população, mas, podemos dizer, o Brasil é ribeirinho. Os beiradões da Amazônia são abrigos, lares para milhares de famílias — pessoas que vivem às margens de rios, lagos, lagoas, riachos, igarapés e igapós e dependem das águas para sua sobrevivência. Não são os homens, mas as águas as donas de tudo. Todo ano elas sobem e descem, fazendo com que essas pessoas permanentemente criem e recriem modos de subsistência: as casas, as plantações, a alimentação, a caça, o trabalho na roça e na pesca são adaptados às mudanças causadas pelas cheias e pelas vazantes. A paisagem muda radicalmente. Por isso, as habitações geralmente são construídas sobre palafitas e o deslocamento é feito usando cascos, canoas, rabetas, voadeiras e barcos maiores. 

Em muitas localidades não há luz elétrica. Embora essa questão esteja mais estável do que há décadas, ainda assim muitas vezes passam-se dias e noites sem eletricidade, sem ventilador, geladeira, televisão ou internet. O paradoxo grita: esses grupos humanos são fundamentais para a conservação da biodiversidade e, ainda assim, marginalizados, do ponto de vista da cidadania e dos avanços do progresso técnico e material. 

Em minhas andanças pela Amazônia, na maior parte das minhas vivências e estadias naquele território verde, estive com os ribeirinhos. Fui criado e educado por homens e mulheres desse grupo, e minha socialização primária se constituiu de brincadeiras em casas e quintais de populações ribeirinhas. Na Amazônia Legal, existem quase 800 municípios. Um deles, o de Barreirinha, no interior do estado do Amazonas, tem uma população de 30 mil habitantes. A cidade, fundada em 1881, é banhada por dois grandes e importantes rios da região: o Paraná do Ramos, de água barrenta, é um afluente do rio Amazonas e corre na frente da sede do município. Na parte de trás da cidade está o rio Andirá, onde habitam indígenas do povo Sateré-mawé e onde está a maior população quilombola do estado amazonense. No entanto, a maioria dos ribeirinhos de Barreirinha não se declara indígena ou quilombola. 

No interior desse município, no distrito de Freguesia do Andirá, vivem aproximadamente cinco mil pessoas. É uma área de terra firme. Não alaga, como as terras da várzea, o que lhes garante certa estabilidade diante do movimento das águas. Mesmo assim, a vida de toda a gente é movida pelos períodos de seca e de cheia. Não há hospitais, e apenas um posto de saúde. Duas escolas públicas atendem estudantes da educação infantil até o ensino médio; não há universidade. Há mais de uma dezena de igrejas, católicas ou evangélicas. Muitos comércios atendem a população com produtos de necessidade básica. Diversas famílias cultivam, em seus roçados, mandioca, café, guaraná e outros frutos. Dessas plantações vêm sua subsistência. A internet 4G chegou há alguns anos. Praticamente toda semana falta luz, às vezes durante dias.  

Ali nasceu e vive Marcelina dos Santos, a dona Anjinha, de 75 anos. Ela é uma sábia das plantas. Aprendeu muito com sua mãe, dona Coló, falecida em 2023 com quase cem anos de idade. De seus onze irmãos, Anjinha foi a que mais absorveu os conhecimentos sobre os cuidados do corpo com folhas, óleos e raízes. Um dia, numa manhã luminosa em seu barracão, perguntei se ela se considerava indígena. Como se minha pergunta não fizesse muito sentido, me disse: “Aqui todo mundo é índio: meio índio ou muito índio”. Mesmo assim, Freguesia do Andirá não é oficialmente considerada área indígena. 

É um lugar de muito sincretismo cultural: tem a festa dos marujos, celebração católica afroindígena, com danças e batuques; as pastorinhas, que saem às ruas celebrando o Dia de Reis; os times de futebol e seus campeonatos; as famílias que fazem a farinha e o guaraná; os evangélicos. Muita gente tem telefone celular e está ligada na internet. Se algum doente precisa de tratamento especializado, vai a Barreirinha. Se o caso for grave, a Parintins, ou até mesmo a Manaus, distante 24 horas de barco. 

Nesse lugar, existe um brasil no Brasil. Dona Anjinha aprendeu com sua mãe a fazer o banho de cheiro. Utiliza folhas e ervas da região: girão, vindicá, hortelãzinho, chama, mucuracaá. O banho, de purificação, de cura, é de abrir caminhos, tirar quebranto. Quando alguém está muito panema, sem sorte na caça ou no amor, o banho resolve. Ou quando for caso de febre e mal olhado. Dona Anjinha diz que é assim desde os antigos. Ela sabe, naquela imensidão de árvores centenárias, a quais recorrer. Não aprendeu isso com os livros. Também não foi médico que lhe ensinou. Sua mãe, médium, recebia espíritos. Dona Coló, filha dos saterés, era devotíssima de São Benedito, o santo preto protetor dos ribeirinhos e padroeiro de Freguesia.  

Após o preparo de um banho de cheiro, num fim de tarde em que se ouvia a algazarra de andorinhas na beira do rio Andirá, ali debaixo das mangueiras, perguntei a Anjinha quanto poderia lhe pagar por aquela dádiva que me oferecia. Sua resposta — lição da floresta — me mostrou uma vez mais a contribuição da cosmovisão ribeirinha e indígena para a saúde geral: “O que eu faço não custa dinheiro”. Que saibamos incorporar em nossas vidas outras formas de nos relacionarmos e de estarmos no mundo, menos dependentes dos mercados financeiros e mais conscientes de que a natureza veio antes e permanecerá depois que nós, humanos, desaparecermos do planeta. 

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