Em entrevista presente no filme “Dorival Caymmi — Um homem de afetos”, de Daniela Broitman, o compositor conta que seu primeiro encanto com o mar veio pela música do mar. De madrugada, em sua cama, ouvia o barulho das ondas quebrando nas pedras de Salvador, observando a variação sonora conforme a maré enchia e esvaziava.
As ondas que quebravam ali, na sua imaginação de menino, definiram mais do que a música de Caymmi. O imaginário formado pela espuma que se ergueu delas, pelo aroma da maresia, pela erosão lenta das pedras, pelas marcas que elas deixaram na areia moldaram a existência do baiano, seu olhar sobre o mundo. Um olhar materializado e traduzido, em poesia e música, no conjunto de composições que ficou conhecido como “canções praieiras”.
Ali, nesse gênero musical criado e encerrado em si mesmo (não há canções praieiras antes ou depois de Caymmi), o artista entrelaçou filosofia e poética, o documental e o mitológico. Tudo partindo do mar, a grande metáfora da vida — aquele que guarda os mistérios, a bonança das redes cheias de peixes, as tempestades, a morte.
A memória do mar como beleza e dor remonta à primeira vez que Caymmi o viu, na casa de sua tia e madrinha Maria da Piedade (ou Tia Pipi, como ele chamava), no Rio Vermelho. Ele conta, em relato que pode ser lido na biografia “Dorival Caymmi — O mar e o tempo”, escrita por sua neta Stella Caymmi: “Subi num monturo para alcançar o alto do muro e ver o mar. Escorreguei com peito do pé num caco de vidro, o que me abriu um talho no dedo polegar direito”.
Aquele universo da praia, dos pescadores e suas mulheres, a riqueza simbólica e imagética presente ali, foi exercendo fascínio crescente conforme Caymmi crescia. Sobretudo a partir de sua experiência em Itapuã, praia paradisíaca afastada do centro de Salvador. Desde a adolescência, o baiano costumava veranear lá, com amigos. Observando aquela vida que corria à beira-mar e mar adentro, compôs a que afirma ser sua primeira canção praieira, “Noite de temporal”.
Apesar de seu caráter inaugural, “Noite de temporal” já encerra muito do universo que se delinearia melhor nas canções praieiras que viriam. Estão ali o mar como entidade poderosa, merecedora de respeito (“Pescador não vá pra pesca/ Que é noite de temporal”); os dramas vividos na praia (“Pescador se vai pra pesca/ Na noite de temporal/ A mãe se senta na areia/ Esperando ele vortá”); a referência a cantos tradicionais dos pescadores (“Ê lambaê, ê lambaio”); e o violão especialíssimo de Caymmi, que encarna em si o próprio movimento do mar e das cenas litorâneas.
Em “Noite de temporal”, seu violão bate como o mar agitado pelo tempo ruim, marcado no polegar que bate nas cordas graves. Em seguida, ele se desmancha em dedilhado suave, ao sair do fato concreto da tempestade e transportar para o plano do narrador — a voz da sabedoria, que aconselha a não ir pescar, e a voz da serenidade, que conta da angústia da mãe. Por fim, o instrumento volta a emular o mar revolto.
Impressiona a maneira como o violão de Caymmi evoca a atmosfera praieira tanto ou mais do que suas letras. Seu violão não imita o mar, como se fosse uma sonoplastia — ele é o mar. Não por acaso, foi pelo instrumento que o baiano quis apresentar essas músicas, nos anos 1950, em álbuns como “Canções praieiras” (1954) e “Caymmi e seu violão” (1959) — num momento em que o formato voz-e-violão estava longe de ser um padrão, ou de ter a popularidade que teria a partir da década seguinte.
Em “O vento”, o dedilhado é cheio de ar e movimento, como a brisa marinha. “É doce morrer no mar” tem a suavidade da maré calma que Caymmi canta — apesar de o tema ser a morte, ela é doce. Os ataques do polegar em “Pescaria” acompanham o ritmo dos remos e de todas as ações descritas nos versos (“Cerca o peixe/ Bate o remo/ Puxa corda/ Colhe a rede”). “A lenda do Abaeté” traz nas tensões harmônicas de seus acordes a atmosfera das histórias de assombração associadas à lagoa do Abaeté (“Credo cruz, te desconjuro/ Quem falou de Abaeté”). Em “Milagre”, a mudança de tempo repentina é acompanhada por uma rara modulação, uma mudança de tom tão repentina quanto (“Se sabe que muda o tempo/ Se sabe que o tempo vira/ Aí o tempo virou”). “O mar” é pura contemplação de alguém sentado na areia, na qual o violão parece vir daquele som que o menino Caymmi ouvia em seu quarto.
“O mar” é uma das canções na qual se mostra de forma mais marcante o olhar de Caymmi sobre o mar. A construção dos versos iniciais, que servem de motivo e refrão, merecem um olhar detido. As vogais alongadas (“O maaaaaaaaaaaaar/ Quando queeeeeeeeebra na praia”) cria uma tensão de onda que se forma e que criam a expectativa da conclusão, a quebra da onda. E ela se dá da forma mais surpreendente, porque, para dar conta da beleza do mar, da grandeza imensurável que ele tem a seus olhos, Caymmi não procura palavras especialmente poéticas e precisas, tampouco uma metáfora sofisticada. A impossibilidade da descrição é resolvida, pelo compositor, no adjetivo mais banal: “é bonito”.
A maneira que Caymmi fala sobre o mar reflete esse olhar de quem o vê como algo tão profundo que dispensa que isso seja sublinhado em palavras. Por isso, se seu violão parece pintar com tintas impressionistas o cenário marinho, seus versos são essencialmente concretos, substantivos, descritivos. O narrador não comenta, não conclui nada. Apenas expõe o que testemunha: “A jangada saiu com Chico, Ferreira e Bento/ A jangada voltou só” (“A jangada voltou só”); “No Abaeté tem uma lagoa escura/ Arrodeada de areia branca” (“A lenda do Abaeté”); “Vento que dá na vela/ Vela que leva o barco/ Barco que leva a gente/ Gente que leva o peixe/ Peixe que dá dinheiro” (“O vento”, num conjunto de versos que descreve de maneira extremamente sintética toda a grandeza do ato do trabalho, da conversão da ação humana sobre a natureza em dinheiro, sustento).
Antonio Risério chega a observar, no livro “Caymmi: uma utopia de lugar”, que não há uma única metáfora nas canções praieiras, ou seja, não há abstração. Isso não impede a carga filosófica altíssima presente nesse cancioneiro. “O bem do mar” é um dos maiores atestados dessa concretude caminhando lado a lado da profundidade existencial. A letra afirma, em seu primeiro verso, assumindo a fala de seu personagem central: “O pescador tem dois amor”. Caymmi segue, num desdobramento: “Um bem na terra/ Um bem no mar”.
O bem da terra, ele canta, é a mulher “que fica na beira da praia quando a gente sai”, “é aquela que chora, mas faz que não chora quando a gente sai”. Enfim, a companheira, o amor que se deposita num outro (“É impossível ser feliz sozinho”, como escreveu Tom Jobim numa canção coincidentemente marinha, “Wave”).
Já o bem do mar é descrito por Caymmi dentro da mesma dinâmica que denuncia a insuficiência das palavras para falar do que não cabe nelas, em versos que talvez sejam os mais bonitos (como o mar quando quebra na praia) de sua obra: “O bem do mar é o mar, é o mar/ Que carrega com a gente pra gente pescar”. Ou seja, o bem do mar é a própria existência, “que carrega com a gente”. O amor que não depositamos no outro, e sim na vida em si. No mar.
“João Valentão” não costuma ser agrupada entre as canções praieiras, por se referir à chamada fase urbana de Caymmi, de sambas-canções. Mas seu personagem é um pescador, uma típica figura das que povoam as músicas litorâneas do compositor. Feita por Caymmi inspirada num sujeito que conheceu em Itapuã, ela traça o perfil de um homem duro, violento, mas que “tem seu momento na vida”, em que a sensibilidade aflora: “É quando o sol vai quebrando/ Lá pro fim do mundo pra noite chegar / É quando se ouve mais forte/ O ronco das ondas na beira do mar/ É quando o cansaço da lida da vida/ Obriga João se sentar/ É quando a morena se encolhe/ Se chega pro lado querendo agradar”.
Caymmi conclui “João Valentão” com versos que soam como possível autorretrato, e talvez por isso esteja entre os seus preferidos: “E assim adormece esse homem/ Que nunca precisa dormir pra sonhar/ Porque não há sonho mais lindo do que sua terra/ Não há, não há”. Sua terra que também é seu mar.
Uma canção praieira se destaca em meio às outras, por certa estranheza de sua melodia e mesmo nas escolhas poéticas: “Sargaço mar”. Há nela uma densidade de afogamento que não há, por exemplo, em “É doce morrer no mar”, que a princípio trata do mesmo tema. Mas em “Sargaço mar”, quem morre é o narrador. Nela, Caymmi contempla o próprio fim, no mar: “Quando se for esse fim de som/ Doida canção/ Que não fui eu que fiz/ Verde luz verde cor de arrebentação/ Sargaço mar, sargaço ar/ Deusa do amor, deusa do mar/ Vou me atirar, beber o mar/ Alucinado desesperar/ Querer morrer para viver com Iemanjá/ Iemanjá, odoiá”. Nela, como que ecoam o som das ondas que ele ouvia da cama. Ou se manifesta a derradeira fisgada do corte no pé ante a visão magnífica do oceano. Magnífica não. Bonita, bonita.