O homeschooling é uma das bandeiras do presidente Jair Bolsonaro, mas o método é mesmo possível ou não passa de ilusão? Em maio deste ano, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que autoriza a modalidade de ensino, atualmente proibida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O texto, que ainda será avaliado pelo Senado, altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para que o ensino domiciliar seja admitido na educação básica — pré-escola, ensino fundamental e médio. Desde já, portanto, é importante entender os seus impactos. 

“Capitão Fantástico” (2016), de Matt Ross

Há muito se critica o ensino formal, condenado por ser engessado e pouco atrativo para muitas crianças, além de apresentar uma estrutura que até hoje não consegue blindar os estudantes do bullying. As práticas convencionais, é verdade, às vezes soam ultrapassadas: carteiras enfileiradas, aulas verticalizadas, conteúdos nada convidativos… Isso tudo nos leva a aventar novas possibilidades de educação que repensem o modelo rígido que conhecemos bem.  

Arte: Michelle Mildenberg/New York Times

Evidente que há muito a ser feito pela educação brasileira, muito embora somente sejamos lembrados disso a cada dois anos, quando o assunto ganha respiro momentâneo nos meses que antecedem a ida às urnas. Mas, dentre os muitos possíveis caminhos para melhorarmos, o ensino domiciliar representa um passo à frente ou um passo atrás? Estamos diante duma quebra de paradigmas positiva ou tão somente da edificação de mais e mais muros? E a educação pública, como fica nisso tudo? O preparo técnico do homeschooling é minimamente similar ao das escolas? E quanto ao contato das crianças com outras realidades para além da sua própria, vai parar de acontecer?

Primeiro, analisemos o contexto mundial do ensino domiciliar. A modalidade surgiu, da forma como a conhecemos, há pouco tempo. Foi só no final do século XX que sua aplicação ficou mais estruturada e comum, especialmente nos Estados Unidos  — não à toa o termo inglês homeschooling é de longe o mais popular. “Comum”, claro, é relativo: sua situação atualmente varia bastante conforme o país em que se dá, sendo proibido em potências como Alemanha e Suécia, mas amplamente aceito em países como Austrália e EUA, os dois que mais abraçam o método de ensino. Em outros casos, embora não seja proibido, é restrito a crianças que não podem ir à escola por razões distintas. 

No fim, é notável que, no pouco tempo de vida respirando por intermédio de moldes mais definidos, o ensino domiciliar já tenha recebido acolhimento (dentro e fora de territórios norte-americanos).

Pensando no Brasil, é sabido que, desde que o samba é samba, um dos principais problemas da educação é a escassez de recursos financeiros. Mesmo com o aumento de investimento ocorrido nas últimas décadas, as escolas públicas ainda não têm infraestrutura para atender adequadamente os estudantes, muitas vezes sobrecarregando professores com proporções descabidas de turmas e cargas horárias — tendo a sub-remuneração como a cereja podre do bolo. Por essas e outras, é um dos países da América do Sul com os piores indicadores educacionais. 

Para Jair Bolsonaro e apoiadores do governo, a educação domiciliar é uma forma de pais e responsáveis legais blindarem seus filhos de supostas ideologias transmitidas dentro da sala de aula. A lógica é a de que valores tradicionais de família e religião são passados com mais facilidade se os arredores são mais controlados. No entanto, numa visão diametralmente oposta e mais abraçada pelos especialistas em pedagogia de todo o mundo, Paulo Freire dizia que “o educador tem o dever de não ser neutro“. Ou seja, o papel do educador não é colocar o estudante num ambiente hermético e protegido, é desenvolver seu conhecimento e pensamento crítico a partir de uma escola emancipadora voltada para a promoção da cidadania e do desenvolvimento social-cultural.

De acordo com as regras previstas no texto-base da nova lei, o ensino domiciliar vem acompanhado de algumas condições — que, por sua vez, não são tão simples assim, por demandarem um nível de fiscalização improvável. Antes de tudo, os responsáveis deverão fazer matrícula anual em uma escola regular, onde também devem formalizar a escolha. Feito isso, será necessária a comprovação de escolaridade de nível superior, por pelo menos um dos pais ou responsáveis legais, além do envio de relatórios trimestrais com a relação de atividades pedagógicas e avaliações anuais de aprendizagem.

A ala da “não-doutrinação”, composta em sua grande maioria pela parcela mais conservadora, argumenta que algumas milhares de crianças já vivem o homeschooling e a lei viria, portanto, para regularizar a prática; enquanto que a contra argumentação alega que o projeto, na verdade, visa a individualizar o processo educacional e diminuir a força já exígua da escola pública. Isso garantiria a reprodução das ideias da classe dominante e a inibição da formação de pessoas cujas ideias nasçam de outras perspectivas e subjetividades. 

“Dente Canino” (2009), de Yorgos Lanthimos

De acordo com o artigo 207 Constituição Federal, “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Com isso em mente, tomemos algum tempo para refletir sobre a palavra “liberdade” — ela é a principal justificativa de quem defende o Projeto de Lei que autoriza o homeschooling, sob a ótica de que é uma forma mais livre de ensino; mas, ironicamente, a mesma palavra também é o conceito-chave para quem é terminantemente contra a ideia de ensino domiciliar, com o entendimento de que a libertação insuspeita só vem por meio da educação plural oferecida em escolas. 

Deixando toda a maleabilidade teórica de lado, parece claro que, desde o começo da pandemia da Covid-19, quando o ensino domiciliar angariou força junto ao contexto de quarentena, está cada vez mais premente pensarmos sobre como os métodos de ensino vigentes se encaixam na atualidade. 

Que os tempos mudem, mas a educação siga acontecendo como prática da liberdade.