Uma pessoa na casa dos seus vinte ou trinta anos, de classe média, acorda. Com as redes sociais buzinando desde que ela abre os olhos, não demora a prorromper uma certa pressão — às vezes sutil, às vezes nem tanto — para que um senso generalizado de realização, num âmbito pessoal e profissional, seja vivido. Seis, sete, oito da manhã e já há quem tenha jogado na cara uma ida à academia e um sorriso indefectível no rosto para encarar os perrengues do dia. Tão logo, mesmo que ainda sob o cobertor, essa pessoa se vê imersa em um mundo regido pela diretriz de se ir atrás, alegremente, daquilo que “te faz feliz” e conseguir tirar uma vida disso — e olha que essa pessoa nem sequer teve tempo de abrir o LinkedIn. Durante toda a vida do arquétipo tratado aqui, de vinte/trinta anos e de classe média, essa pessoa foi incentivada a perseguir os seus sonhos e transformar as suas paixões em uma carreira viável. Se por um acaso, nos anos de formação, ela pensou em se dedicar à medicina ou, vá lá, à advocacia, foi mais por gosto pessoal e menos por pressão parental.
No entanto, a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão, o que acontece pela visão de que é inviável ter prazer na vida sem que se encontre o trabalho perfeito e se alcance o equilíbrio entre o que é a vida pessoal e o que é o trabalho. A impressão, muitas vezes, é a de que, sem isso, a felicidade real não vai ser possível e que a culpa, no fim, é sua. Se ao acordar para ir trabalhar a pressão já se faz presente, ao menos para martelar os ânimos, em algum nível, imagine então no trabalho propriamente dito. Neste contexto, esta pessoa se esgota fazendo um verdadeiro malabares mental para balancear suas expectativas pessoais, as demandas do mercado de trabalho e a realidade das oportunidades disponíveis, tudo isso enquanto busca construir uma relação saudável e significativa com o trabalho, além de quebrar a cabeça para fazer com que as finanças batam. É um prato cheio.
Será mesmo que aquele nove-às-cinco impessoal, bate-cartão-na-entrada e bate-cartão-na-saída, era tão ruim assim?
O dia acaba e, veja só, ela não está necessariamente feliz, o que é algo natural na vida de qualquer um, mas, considerando a positividade profissional tóxica que o mundo circunscreve à ela, isso faz com que ela fique ainda pior, seja por não estar fazendo o que ama ou por estar fazendo o que em tese ama e mesmo assim não ter alcançado a tão almejada plenitude. Uma coisa leva a outra, feito a mais Millenial e Gen-Z das bolas de neve, e, agora com a cabeça deitada no travesseiro, os pensamentos não dão trégua.
“a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão”
Eventualmente, dorme. E, então, para o bem e para o mal, o dia seguinte vem.
Parece exagero televisivo ou literário, coisa saída de uma ficção distópica de pouca imaginação, mas essa autocomparação que coloca o factual e o idílico lado a lado é uma dinâmica diária de muitas pessoas. A psicóloga Thais Andrade1, tomando como referência seus muitos anos de prática, reflete sobre a importância do trabalho para as pessoas:
“A partir da minha experiência, observo que o trabalho é não apenas central como também essencial na vida de grande parte das pessoas. Para uma vasta maioria significa sobrevivência e sustento; para outros, como deveria ser para todos, significa também a possibilidade de reconhecimento e satisfação pessoal. Por essa razão tantos caem em depressão quando, por exemplo, deixam de trabalhar ou se aposentam. Para muitos essa mudança é catastrófica, uma vez que inúmeras perguntas nunca questionadas começam a emergir: quem eu sou sem meu trabalho? O que faço comigo? O que faço com meu tempo? Do que eu realmente gosto? Como estão minhas relações pessoais? Além de, é claro, a preocupação em pagar as contas.”
A relação com o trabalho passou por transformações significativas ao longo das últimas décadas. Basta tomarmos os anos 1980 como parâmetro. Havia aquele grande culto ao trabalho, sendo praticamente inevitável que aquilo fosse o centro da vida de uma pessoa, que tinha uma mentalidade de dedicação e comprometimento total à carreira. E não era bem como vemos com mais frequência hoje, de “eu faço o que gosto, então é claro que me dedico”, mas uma lógica de “eu vou virar tudo o que me dá retorno, não importa o que seja”. Os engomados de Wall Street, tão bem vestidos quanto tão sem escrúpulos, vêm à mente, certo? De Michael Douglas a Leonardo DiCaprio, de Sigourney Weaver até Melanie Griffith. Aqui no Brasil, com o boom de agências de publicidade e o espírito empreendedor generalizado começando a florescer, não foi muito diferente.
Aqui e lá — e em tantos outros “lás” —, foi a década dos yuppies, obcecados em fazer mais e mais dinheiro, independentemente do quanto isso fosse pesar na vida pessoal. Analisando em retrospecto, com os valores da sociedade atual em mente, isso pode soar como algo absurdo. De fato, houve uma mudança nessa perspectiva.
“A vivência da frustração, que nos acompanha desde o nascimento, é fundamental para o desenvolvimento do nosso psiquismo e para a constituição de quem somos”, diz Thais Andrade. “Wilfred Bion e Donald Woods Winnicott, psicanalistas ingleses, escreveram de forma muito profunda sobre o tema. Frustrar-se faz parte da natureza humana e a maneira como lidamos com a frustração desenhará nosso caminhar pela vida.
Agora, será que uma pessoa que nasceu no início dos anos 80 teria uma tendência a ter mais tolerância e capacidade de lidar com as frustrações do que, digamos, um nativo digital? Alguém que, ainda engatinhando, já teclava nos celulares e tablets? Acredito que já existam pesquisas nesse sentido. Talvez sim, talvez não (existem os aspectos da constituição de cada um). O fato é que a vivência da espera era outra e a percepção desta parece mudar a cada geração.”
O trabalho é visto atualmente de uma maneira diferente, como uma ideia que foi, ao mesmo tempo, expandida e reduzida.
Expandida porque, na medida em que a gama de possíveis atividades profissionais vai se ampliando a cada dia, mais caminhos podem ser traçados — estamos na época em que jogar videogame pode dar dinheiro (imagine dizer isso a um menino dos anos 1980!). E reduzida porque, por mais importante que seja o trabalho, ele não deveria mais ter o poder de nos definir. “Eu não sou o meu trabalho” é um discurso recorrente. Há uma tendência crescente de enxergar o trabalho como uma parte importante da vida, mas não necessariamente como o único ou principal elemento definidor da identidade pessoal.
A busca por propósito e satisfação pessoal no trabalho tornou-se mais evidente, e as pessoas estão cada vez mais dispostas a explorar suas paixões e interesses, transformando-os em carreiras viáveis. Bonito, não? Sim, bastante. Mas é justamente aí que as contradições começam a aparecer. Há pouco tempo, tanto em redes sociais de caráter profissional quanto em plataformas como o Instagram, rodou o seguinte desafio: “Diga quem você é sem citar o seu trabalho”. Isto é, não valeria dizer “comunicador”, “empresário”, “bartender”, nem nada disso. Difícil. Por mais que a vida pessoal hoje seja importante — talvez, sim, até mais importante do que a vida profissional —, ainda temos o costume de nos classificarmos a partir de nossas atividades profissionais. O que isso diz sobre nós? É um mero ricochete de outras gerações ou a coisa vai bem além? A reflexão ganha ainda mais camadas quando a digital pessoal é tão marcada na vida profissional, como ocorre amiúde na atualidade, na grande maioria de setores e até classes sociais. O trabalho, então, por mais que mudanças teóricas, e até práticas, tenham acontecido, segue tendo muitas vértebras em nossas espinhas dorsais.
Será que, no fim, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?
Uma mudança notável e inegável é que as atividades que antes eram consideradas apenas hobbies, como gostar de filmes ou de games, agora podem ser encaradas como opções reais de carreira. Essa mudança de mentalidade, e realidade de mercado, permite que as pessoas busquem caminhos profissionais que estejam mais alinhados com seus interesses e habilidades, o que resultaria em uma maior satisfação e realização no trabalho — isso, claro, quando o bailado é feito sobre o campo da teoria. Por mais positivo que esse novo aspecto possa ser, a busca por uma carreira baseada em paixões e interesses também pode trazer um sem-fim de frustrações. Não vai ser toda vez que aquilo que se deseja vai ser alcançado, e se porventura isso acontecer, as expectativas nem sempre são atendidas. É a velha máxima do “cuidado com o que deseja, pois você pode um dia conseguir tudo”. A discrepância entre a realidade e as expectativas têm o poder de levar a um constante estado de insatisfação, criando um inquietamente interno psicológico que faz as pessoas estarem sempre em busca de algo mais, em busca daquela sensação de plenitude profissional, e pessoal, que muitas vezes é difícil de ser alcançada.
“Um dos problemas do mundo atual, onde estamos com nossos pés fincados, é que com tanta demanda, tanto excesso de informação o tempo todo, fica difícil encontrar espaço para o sentir — incluindo a felicidade ou o processo de descobrimento do que despertaria tal sentimento. Como encontrar espaço dentro de nós, e em nosso dia a dia, para que os momentos de felicidade possam existir? Ou para percebê-los?”, questiona a psicóloga. “Outro ponto é que mesmo aquilo que nos faz feliz vai dar trabalho, vai ter perrengues, dificuldades, restrições, escolhas.”
Lembra da frase “trabalhe com o que você ama e nunca mais precisará trabalhar na vida”, atribuída a Confúcio? Ela reflete uma noção completamente idealizada de que se pudermos fazer o que amamos, o trabalho se tornará uma fonte contínua de felicidade e satisfação. Acordar vai ser fácil, enfrentar o trânsito não vai doer, passar horas infindas na labuta vai ser mole. Convenhamos que Confúcio, ainda que no auge de sua sabedoria, nada sabia sobre levantar cedo para trabalhar. Estima-se que o filósofo chinês viveu no mundo que antecedeu Cristo, séculos e mais séculos atrás. No entanto, essa perspectiva otimista segue sendo amplamente divulgada e incentivada, muito embora não responda mais ao que entendemos por mundo há um bom tempo.
Que justiça seja feita, há perfis por aí, populares e conscientes, que questionam tais platitudes, como o Obvious aqui no Brasil. No geral, transmitem mensagens empáticas sobre trabalho, autoestima, as dificuldades enfrentadas diariamente por mulheres e tantos outros temas importantes. É necessário que esse contraponto exista para que se enfrentem as visões idealizadas e crie nas pessoas a sensação de que está tudo bem caso alguma coisa dê errado nas suas respectivas buscas por satisfação pessoal e profissional. É uma questão de perspectiva: a frase de Confúcio, dependendo de quem a encara, pode ser vista como “trabalhe com o que você ama e, assim, você trabalhará 24 horas por dia”. Ela expressa um ponto de vista mais realista, destacando que se dedicar exclusivamente ao trabalho que amamos pode levar a uma imersão constante, onde a linha entre vida pessoal e profissional se torna tênue.
Enquanto a primeira versão da frase sugere que a paixão pelo trabalho elimina a sensação de estar trabalhando, a segunda versão aponta para a possibilidade de uma sobrecarga e de sacrificar outros aspectos importantes da vida. É importante reconhecer que, mesmo em uma carreira apaixonante, haverá tarefas menos agradáveis e pressões profissionais. E, acima de tudo, haverá o compromisso, a responsabilidade, que, por si só, já têm um peso diferente. Assistir a um filme é uma coisa, assistir a um filme e ter que escrever sobre ele é outra; ter uma banda é uma coisa, ter que compor um número razoável de novas canções dentro do prazo e fazer 25 shows ao mês é outra. E por aí vai. Nem mesmo seguindo as vocações que respondem ao mais espiritual dos ensejos, por exemplo, impedem que os burnouts aconteçam.
“Correr não adianta”, analisa Thais Andrade, “precisamos de pausas. É nessa brecha que podemos, quiçá, encontrar opções criativas e mais saudáveis para sairmos do lugar. Porém, descer da esteira que nos faz correr e não nos tira do lugar implicará em lidar com a realidade externa e com nós mesmos. Isso inevitavelmente vai gerar sofrimento, mas também será uma oportunidade de desenvolvimento pessoal. Quando nos olhamos, além de nos depararmos com nossas limitações, também podemos nos deparar com nossos potenciais, a depender do quanto é possível tolerar a dor que a realidade nos impõe.”
“Em complemento”, finaliza ela, “estamos na era da positividade excessiva, em tempos em que a Fake News do ‘tudo é possível e está a seu alcance’ circula das mais diversas formas pelas redes sociais. Se por um lado, a geração Z se opõe ao modelo de trabalho excessivo das gerações anteriores; por outro, também são estimulados a fazer aquilo que amam e a seguir seus sonhos. Cabe destacar, porém, que o véu do excesso de positividade pode turvar a visão e deixar o coração iludido.”
O pessimismo recorrente em algumas gerações pode ser atribuído em parte à percepção de que alcançar a felicidade plena no trabalho pode ser uma expectativa irrealista. É importante lembrar que a felicidade não é exclusivamente derivada do trabalho. Outras áreas da vida, como relacionamentos e tempo livre, obviamente também desempenham um papel significativo no bem-estar geral. Em vez de buscar incessantemente a perfeição e a felicidade total no trabalho, é mais realista e benéfico buscar um equilíbrio saudável, encontrar propósito nas atividades profissionais e também valorizar os momentos de descanso e cuidado pessoal.
É como diz Issa, protagonista de Insecure (2016-2021), série que, dentre muitos temas, lidou muito bem com as complexidades do trabalho na vida atual, especialmente quando ele se mistura com a vida pessoal:
“Eu sou uma bagunça. Mas uma bagunça que está aprendendo a lidar com os seus problemas.”
1Thais Fonseca de Andrade, psicóloga clínica e psicanalista em formação pelo Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Mestre em Ciências (USP) e Especialista em Psicoterapia Psicanalítica (USP) ([email protected]).