Na última década, a representação de minorias políticas na mídia se tornou um assunto com muito espaço e alguma tração. Muitos também apontam, no entanto, que a moeda da “representatividade” pode ser uma armadilha, valorizada de maneira isolada. Grandes corporações como a Disney estão mais do que dispostas a incorporar minorias como protagonistas, às vezes encenando narrativas de emancipação política, mas isso tende a se dar de uma maneira que suaviza conflitos e arestas. 

Do ponto de vista da crítica, a valorização do cinema negro, por exemplo, na forma de uma “tokenização” (para falar como o crítico e produtor Bernardo Oliveira), periga apenas estender o velho circuito de apropriação capitalista da criatividade popular, como tanto se fez no século XX com a música negra em particular. 

A bandeira da “representatividade” não pode ficar restrita a botar dentro da tela pessoas diferentes daquelas de sempre (ou, mesmo, a colocá-las por trás das câmeras). Tampouco pode ser reduzida a uma camada de conteúdo, em que qualquer narrativa de empoderamento seja vista como um gesto emancipador. A diversidade precisa alcançar todo o circuito, e não só a superfície, se quiser se fazer valer. 

Não sou exatamente um especialista nesta questão. O que estudo, além de literatura, é comunicação e tecnologia, teoria de mídia, o campo que alguns, como o inglês Matthew Fuller, chamariam de ecologia dos meios de comunicação. Essa é a dimensão que quero invocar aqui. 

Representar, afinal, não é só atuar, escrever, dirigir uma cena. Produtores, editores, donos de revista e jornal, todos estão implicados em gestos de representação. Não só estes, mas ainda programadores de plataformas, engenheiros de dados, gestores públicos, servidores de agências de controle. Se a nossa vontade é democratizar nossa comunicação, equalizar nossos canais culturais, a diversidade implicada do circuito precisa ser repassada de cabo a rabo. 

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O pensador canadense Marshall McLuhan disparou o campo anglo-saxão dos estudos de mídia nos anos 60 propondo que o “o meio é a mensagem”, ou seja, a forma com que a informação chega importa tanto quanto o conteúdo. Muniz Sodré, professor da UFRJ e um dos mais notáveis teóricos brasileiros da comunicação, retoma e amplia essa ideia dizendo que a televisão não é só um modo de transmitir um conteúdo, mas é uma forma de vida, parte integral da composição de um novo tipo histórico de ambiente imersivo e interativo. O mesmo poderia ser dito das nossas plataformas atuais.

Por isso mesmo, Sodré também nos adverte há tempos que, dentro desse espraiamento progressivo da tecnologia sobre a sociedade, os atos políticos genuínos envolvem a possibilidade de quebrar a forma midiática dominante. Justamente porque vivemos hoje no interior de plataformas digitais, torna-se cada vez mais importante a necessidade de contrabalancear o poder das coreografias que nos regem por meio da introdução de outras – criando forças de distribuição que preencham os intervalos deixados pelas formas dominantes, por exemplo, ou mesmo (nos casos em que isto é impossível ou pouco estratégico) arranjando formas de utilizar as plataformas dominantes atuais de modo “errado”, em direções contrárias àquelas que seus parâmetros esperam. 

Não que seja fácil. Afinal, como argumentam teóricos como Friedrich Kittler e Wendy Chun, os dispositivos digitais tendem a reproduzir as estruturas de poder que os produziram. Neste sentido, vários dos problemas que enfrentamos hoje em nossa ecologia digital atual já se encontravam latentes na formação da cultura do Vale do Silício. A chamada “ideologia californiana” se consolidou durante as décadas de 80 e 90 na forma de um utopismo digital com inspirações diluídas da contracultura dos anos 60, mas centrado sobretudo no poder do usuário como consumidor, em interfaces cada vez mais fáceis de usar e na crença do poder libertário da informação conectada em rede.

Tanto as primeiras redes de TCP-IP (como a ARPANET) quanto o protocolo de transferência de hipertexto (desenvolvido no CERN) eram infraestruturas públicas de pesquisa, desenvolvidas dentro de um espírito científico colaborativo (ainda que com um pano de fundo militar). Mas a visão que triunfou desde a década de 90, sincronizada com o triunfo político do neoliberalismo, foi a da privatização progressiva da internet, tomada como uma nova fronteira a ser conquistada por empreendedores titânicos. Depois do estouro da primeira bolha especulativa, no final do milênio, tivemos a expansão acelerada, principalmente a partir da década de 2010, do tamanho e do valor de um punhado de plataformas e redes sociais.

Algumas tentativas de manter a visão utópica da internet como um bem comum continuam aí, mantendo-se como podem (Wikipédia, a lista Net-time, Scihub, etc.), mas, fora da pálida possibilidade de intervenção estatal para quebra dos monopólios, o cenário para uma internet mais diversa não anda muito animador. 

Além dos riscos já notórios à democracia e à competição, a concentração extrema do poder digital na mão de um grupo muito pouco diverso de pessoas leva a uma série de pontos cegos e distorções graves, reforçando patologias sociais já existentes (desde erros no reconhecimento facial de pessoas não brancas ao uso de algoritmos de Big Data em direito penal).

A questão urgente de ampliar a diversidade na tecnologia, portanto, não deveria se concentrar em buscar incentivos para criar um Steve Jobs negro, ou um Mark Zuckerberg que acontece de ser uma mulher latina, mas em promover publicamente uma cultura técnica de inovação sistêmica e coletiva, uma ecologia digital democrática em que figuras românticas nocivas como o bilionário visionário não tenham o espaço que ainda têm hoje.

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A pandemia escancarou de maneira escandalosa o tanto que a saúde de uma sociedade depende da saúde de suas redes de comunicação. Não só o Brasil, mas quase todo o mundo dito desenvolvido teve muita dificuldade em fazer com que as pessoas acreditassem nos especialistas e seguissem as recomendações científicas, mesmo num caso de vida ou morte. 

O negacionismo teve concentração intensa na extrema-direita, mas o fato é que se espalha por toda a sociedade, dos mais aos menos escolarizados, dos hippies aos fascistas. A crise de credibilidade e confiança em especialistas e instituições não é bem um problema técnico de comunicação, no sentido de ser algo que se resolveria com um sistema melhor de publicidade e checagem de fatos (embora essas coisas possam ajudar, em alguns contextos). Aponta para uma cisão social muito mais profunda. O fato, que a pandemia tornou mais claro do que a eleição de 2018 já havia tornado, é que hoje vivemos em bolhas de informação que mal se tocam, preenchidas por valores e imagens radicalmente antagônicos.

Parte do desafio, hoje, de comunicar a gravidade da emergência climática, por exemplo, parece derivar da dificuldade profunda de criar laços de credibilidade numa ecologia midiática tão pulverizada. Num mundo em que o dinheiro fala mais alto do que tudo, com camadas diversas de publicidade dominando o discurso público, as pessoas têm todos os motivos concebíveis para serem paranoicas com o que ouvem por aí. Tampouco podemos ficar tão surpresos assim com a falta de credibilidade em especialistas em geral, quando tanto espaço nos canais das correntes dominantes é dado para tecnocratas cínicos que defendem os interesses de sempre, mesmo nas situações mais absurdas, diante dos sinais mais extremos. Num mundo assim, fica difícil simplesmente pedir para as pessoas acreditarem nas instituições e pronto, sem deixar claro que algumas delas precisam, de fato, ser transformadas radicalmente.

Na maior parte do século XX, o modelo midiático dominante foi o dos meios de massa, em que um único “mainstream” (ou corrente dominante) era concentrado em alguns poucos canais de informação. Desde o início do novo milênio, esse modelo de concentração midiática em alguns canais dominantes com capacidade grande de controle do que circula vem sendo substituído, aos poucos, por uma ecologia de meios muito mais dispersa (mesmo que perigosamente concentrada num punhado de plataformas).

No Brasil, as novas camadas de comunicação digital recobrem um país ainda marcado por uma profunda concentração midiática de caráter oligárquico, tanto regional quanto nacionalmente. Apesar da proibição legal explícita, é de amplo conhecimento o controle oficial ou extraoficial que inúmeros políticos eleitos em cargos do executivo e do legislativo têm de concessões de rádio e de televisão, por todo o Brasil. Além disso, um pequeno punhado de jornais e canais de televisão, concentrados no Rio de Janeiro e em São Paulo na mão de poucos grupos e famílias, ainda se compreende como constituindo a opinião pública relevante, no sentido de formadora de consenso político (mas com uma força que parece ter minguado bastante nos últimos anos). 

Com todos os seus limites e problemas, a internet de fato trouxe um começo de equalização do acesso à informação (mesmo que precária e ainda bastante parcial), principalmente a lugares profundamente desiguais como o Brasil. Num país onde tudo está tão concentrado na mão de poucos, não se pode desprezar a potência radical de democratização que a internet ainda pode trazer, por baixo dos jardins fechados das plataformas.

A solução para a torre de Babel atual de desinformação não pode ser um retorno à banda estreita e concentrada de antes, mas é claro que tampouco pode ser uma ecologia totalmente horizontal em todas as direções, sem mediadores e especialistas, sem regulamentação e responsabilidade legal, sem alguns nódulos concentrados e canais institucionais robustos. 

Críticos e curadores precisam ainda ter o seu lugar, mas não como implementadores de uma tecnocracia vertical em bloco, moralistas de ocasião ou sacerdotes de distinções sociais arcaicas fantasiadas de apreciação cultural. Críticos devem ser sensores e não censores, sugere Kodwo Eshun. A equalização geral dos canais culturais é totalmente necessária, é para ontem, mas não pode querer dizer a dissolução de tudo numa mesma massa pastosa e entrópica – que seja, antes, o triunfo da diferença, com todo seu ruído, toda sua amplidão.