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Na cabana com quarto, sala, cozinha, cabana cujo aluguel consome dois terços da minha renda mensal, às margens do lago Rixdorfer, das ovelhas e das pombas, dos traficantes africanos sem acesso ao mercado de trabalho e das águias de pedra, eu deito as folhas do jornal na mesa, leio sobre plebiscito em que 56,4% dos eleitores de Berlim decidiram expropriar conglomerados com mais de 3 mil apartamentos e casas. “Esta é a nossa cidade, é a nossa casa”, reclamam locatários e organizadores da iniciativa pela “ressocialização” da moradia em Berlim.

Eu fecho o jornal. Olho a pilha de livros na mesa. No topo está Walden, e, na abertura do texto, o indiciamento de Henry D. Thoreau à sua época, quando o “pobre homem civilizado” devia trabalhar metade da vida para comprar casa que pudesse chamar, legalmente, de sua. O homem selvagem vive em choupana modesta, mas pelo menos é sua choupana, sua propriedade — sem contrato de aluguel, fiador, reajustes conforme inflação. Progresso? As casas melhoraram, mas não os habitantes das casas, ainda aprisionados em “opiniões sobre si mesmos” e em práticas sociais irrefletidas. Thoreau se cansou da sociedade, de suas convenções, e foi viver no bosque.

Por dois anos, dois meses e dois dias, Thoreau viveu mais precisamente em Walden, perto de águas verdes e azuis, esquilos e corujas, pinheiros e mirtilos, numa cabana que ele edificou, por menos de 29 dólares (sem correção monetária), telhas, reboco, “com um sótão e um armário, uma janela grande de cada lado, dois alçapões, uma porta e uma lareira de tijolos no lado oposto”, e três cadeiras: “uma para solidão, duas para amizade, três para sociedade”. Thoreau não se isolou na natureza (ele construiu a cabana perto da família, no terreno de Ralph Waldo Emerson): ir ao bosque, in the woods, significava dar passo atrás, ou adiante, a uma “civilização exterior”. Significava observar, emancipar-se de condições dadas, pensar, viver desperto, alerta. Construir a casa significava obedecer “às leis do seu próprio ser” — e, se preciso, desobedecer a leis que prescrevem votar, mentir, bajular, sabujar vizinhos para vender sapatos, apólice de seguro, casas arquitetadas por gerentes de banco e outros gerenciadores da vida alheia.

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Na pilha de livros, está ainda As origens do totalitarismo, obra na qual vivi por anos, meses, dias, e Hannah Arendt alertou sobre o “perigo de que uma civilização global, universalmente inter-relacionada, possa produzir dentro de si bárbaros ao forçar milhões de pessoas a condições que, apesar de todas as aparências, são condições de selvagens”. O perigo era que essa civilização se expandisse tanto a ponto de não restar nenhum canto “incivilizado” aonde fugir, onde se refugiar. Essa civilização de nacionalismos, imperialismos, totalitarismos ejetou humanos de suas fronteiras, colocou-os em rotas de fuga, campos de trânsito, guetos, dizimou-os não pela intenção maligna deste ou daquele governante, mas pela essência mesma de políticas geradoras de “seres humanos nus” — sem casa, sem proteção governamental, sem direito a asilo.

Com as sociedades de apátridas, “associais”, displaced, o projeto civilizatório passou do “mal-estar” ao não-estar. Assim, em face aos abismos abertos em 1939, 1941, 1945, ao deslocamento e desaparecimento de milhões, Arendt pediu novas leis e novos princípios, e buscou novos exemplos para reestabelecer a decência humana. Um desses exemplos era o pária. Membros da minoria europeia “por excelência”, párias como Heinrich Heine e Franz Kafka tinham começado “emancipação por conta própria”, sem ideologias, dogmas, programas revolucionários predefinidos — sua revolta era fundada em “seus próprios corações e mentes”.

Os párias pressentiram forças mortificantes de suas épocas, enxergaram as “correntes subterrâneas” (Kafka) e sentiram o “cheiro do futuro” (Heine). Profetas negativos de “tempos sombrios”, acusaram, artisticamente, a censura, os livros queimados (prelúdio a pessoas queimadas), a aliança entre racismo e burocracia em violência jurídica operada por “ninguém”, guerra, deportação e outras “selvagerias” politicamente organizadas. E pensaram, e falaram sobre a ansiedade apátrida. “Quem não tem pátria”, Kafka escreveu a Milena Jesenská, “tem de pensar o tempo inteiro em buscá-la ou construí-la”, pensar sobre estabelecer residência em Praga, Berlim, Tel Aviv, onde for, desde que se possa viver como escritor ou garçom numa polis onde pessoas não sejam pisoteadas como baratas.


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Na cabana em Walden, perguntando-se sobre as “leis essenciais da existência humana”, Thoreau afirmou, entre elas, “alimento” e “abrigo”. Então, se comer e ter um teto para descansar são — ou deveriam ser — condições humanas básicas, como podemos apoiar sociedade cuja maioria não possui título de propriedade, onde se ingere açúcar demais ou calorias de menos, afixa-se placa de “Proibido Entrar” em florestas frutadas, arregimentam-se vidas para invadir e morrer no México, açoitam-se costas cansadas pelo trabalho forçado em plantações de algodão e promovem-se guerra e escravidão com impostos públicos?

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Ano passado, eu fui a bosques e pedras polidas da Croácia participar de seminário intitulado A condição desumana, em que falei sobre a capacidade do pária de captar “correntes subterrâneas”, usar o nariz para “cheirar desumanidade” — e não apenas “dispensar catarro”, como Joseph Roth disse de escritor exilado em Paris nos anos 1930. Na apresentação, eu me lembrei das sessões por Skype com Fred Dewey, no início da pandemia, quando líamos A marcha Radetzky e deliberávamos sobre como resistir ao “espírito do tempo” e, se possível, acusá-lo. Quando eu falava em Hegel e “complexidade”, Fred protestava: “Não é simples? Quem quer beber água intoxicada, quem quer despejar bombas ou ter bombas despejadas sobre si?” Quem quer dormir em estacionamento, endividado, barraca sob a ponte, comunidade costeira ameaçada pelo nível de oceanos, quem quer morar em casa prestes a desabar?

Não é simples? “Simplifique, simplifique”, Thoreau propôs. Com isso, ele — não um ermitão apolítico, talvez um pária voluntário — iniciou sua jornada “extra-vagante”, pôs-se a vagar por casa e vida liberadas de pressões sociais. Era como se o livro da experiência em Walden, o diário da casa, dissesse aos visitantes: não seja uma função profissional, vá ao bosque e escute a linguagem pré-metafórica do vento, neve, sol (“estrela da manhã”), das formigas. Escute o lamento silencioso de escravos, de índios mortos. Discipline o olhar, perceba “a extensão infinita das nossas relações”. Pegue emprestado um machado, construa sua cabana, ocupe prédio abandonado, funda comunidade onde se transacionam beecoins. Desobedeça a Estados escravistas e militaristas, retire apoio a práticas que você considera injustas. Pense no corpo, na coruja, no oceano, na cidade, na cidade no outro lado do oceano, pense em você e no conceito de humanidade como casas que precisam ser edificadas, protegidas, governadas e, de tempo em tempo, despertadas por rebeldes.