Gosto muito da etiqueta com a qual nossos anfitriões em países de segurança conturbada geralmente se referem a grupos rebeldes, terroristas ou qualquer interessado em decapitar algum turista desavisado no local. “São pessoas complicadas, vocês precisam tomar algum cuidado”, disseram-me em um país do chifre africano. Ao ouvir estes termos, meus primeiros pensamentos remetem a uma breve revisão de conceitos pessoais, sugerindo que a experiência com aquela ex-namorada na adolescência nada me ensinou sobre o que é lidar com uma pessoa realmente “complicada”. Antes do pânico, porém, ouve-se em nosso caso um confortante atenuante: “Mas vocês são brasileiros, sabe? É menos mal!”, completou o anfitrião.
Por conta do nosso futebol, e cada vez mais também pelas novelas, apresentar-se como brasileiro tende a ser uma vantagem na maior parte do planeta. Muitos cronistas esportivos já escreveram muitas linhas sobre a magia da camisa amarela de nossa seleção. Mas fora de campo, é viajar a lugares conturbados que nos faz conhecer essa magia de perto. Desde liberar a entrada na fechada Coréia do Norte, até evitar a prisão em um incidente policial em Teerã, a camisa canarinha já tinha feito de tudo por mim. Não por outra razão tinha meia dúzia delas na mala ao pousar em Bagdá, e ao cruzar a fronteira somali.
Não é difícil testemunhar a influência cultural avassaladora da televisão e cinema estadunidense, mesmo em países onde os EUA não são exatamente queridos. Política, economia e ódio nem sempre se misturam com a diversão pessoal. Nosso futebol, como vem do Brasil, não remete a diversos assuntos, e por isso vai além e baixa a guarda mesmo de pessoas consideradas bem complicadas. Não é de hoje que testemunhamos soldados, mercenários, jornalistas ou aventureiros britânicos, norte-americanos ou de onde seja, vestindo nossa camisa amarela quando em países como o Irã ou Iraque.
No Iraque foi onde, aliás, mais depositei esperanças no fato de ser brasileiro como forma de segurança. Havíamos pousado há mais de duas horas na capital do país, e ainda não tínhamos uma maneira razoavelmente confiável de chegarmos até o hotel. O percurso, segundo as fontes, levava de meia a duas horas, dependendo dos check-points e de possíveis contratempos no caminho. “Contratempo” aqui é outro termo fino usado por pessoas desesperadas por uma vida normal em Bagdá, e no caso engloba um conjunto de possibilidades entre as quais a chance substancial de você jamais chegar ao hotel, ou a nenhum outro lugar.
Já no primeiro , fomos obrigados a exibir o passaporte, e o resultado imediato foi um soldado iraquiano pedindo para tirar fotografias com a gente. Acenou para seu comandante, fazendo sinal de que iríamos tirar fotos. Negativo, recebeu de volta por gestos. O soldado pediu nossos passaportes, afastou-se do carro e os levou até as mãos do comandante, provando a ele que não seria uma quebra de protocolo qualquer. Agora o soldado estava autorizado, e o comandante só não pediu ele mesmo por fotos com a gente pois havia muita gente observando toda a ação.
Dias antes, em Teerã, tivemos um incidente que quase culmina em cadeia, e tensão diplomática entre Brasil e Irã. Nessa ocasião, evitamos nossa prisão ao falar em Ronaldo e no futebol brasileiro. Filmávamos em local proibido, e fomos detidos por uma patrulha. A polícia diplomática do país foi acionada, e chegou com atitude de poucos amigos. Após minutos de desculpas e explicações em vão (com ajuda de um tradutor voluntário), uma segunda patrulha foi acionada, e depois uma terceira, até a coisa escalar a proporções bem assustadoras. A disposição em nos levar para a cadeia só relaxou quando invoquei – ou melhor, inventei – a enorme simpatia de nossos craques pelo país deles. Por sorte, o chefe de polícia tinha muito interesse e muitas dúvidas sobre as informações que recebia na imprensa em relação a forma física de nosso Fenômeno, recém chegado ao Corinthians.
Nossa penetração cultural também se dá em países longínquos com as telenovelas. No Timor Leste assiste-se a capítulos inéditos de Malhação e outros folhetins de sucesso por aqui. Na Albânia, semanas atrás, nossa recepcionista e todo staff do hotel eram incapazes de desgrudar os olhos da televisão, na expectativa que a Patricia Pillar fosse enfim desmascarada na novela A Favorita. Cruzei com novelas brasileiras recentemente em mais de dez países, e lembrar de mais exemplos seria desnecessário. Pelas vias do talento, influenciamos a vida e conquistamos a simpatia de diversos povos. Muito se discute hoje se maiores interferências do governo brasileiro em delicadas questões internacionais não seriam capazes de alterar o sentimento desses povos sobre o Brasil.
O que as vezes parece ser a regra, num espectro maior fica claro que é a exceção: não surpreende o fato de cidades como San Diego, Madri, Sydney ou Miami não abrirem os maiores sorrisos para a camisa da seleção brasileira. Isso porque estão abarrotados de brasileiros sem educação, com ou sem dinheiro. Jaques Atali previu há décadas atrás um futuro onde jovem ricos e pobres seriam nômades globais, os primeiros atrás de diversão e experiência, e os segundos atrás de emprego. No que se refere a diversão e experiência, nossos jovens viajam ao exterior, voltam sem ter aprendido praticamente nada, e ainda repetem no ano seguinte a mesma viagem, trazendo excessos de bagagem por compras de supérfluos. De outro lado, os jovens da elite de países bem educados, como os escandinavos, têm lotado os albergues e praias da zona sul carioca, e procuram meios para residir aqui. Esses parecem ter mais chance numa prova de história brasileira do que quase todos os meus amigos brasileiros em San Diego.
Gosto muito da mesma etiqueta com a qual esses gringos residentes e apaixonados pelo Rio se referem aos problemas da cidade, em conversas onde o anfitrião subdesenvolvido agora sou eu. É interessante que em um caso ou em outro, aqui ou no chifre africano, é o brasileiro que sempre parece ser o privilegiado da conversa. E do planeta. Apesar de alguns de nós sermos bastante complicados.
Espaço brasileiro em espaços complicados
por Bruno Pesca