#4ColonialismoHistória

Escurecendo o chocolate: raça, exotismo e escravidão

O “branqueamento” do chocolate através de misturas com o leite, a infância, famílias e paisagens nacionais não foram capazes de apagar a coloração que ganhou como produto colonial: muito pelo contrário. A disseminação e a transformação do chocolate no hemisfério norte durante o século XIX foram acompanhadas por uma profunda mudança na economia do cultivo do cacau. A medida que o cacau começou a se desenvolver nas colônias tropicais no final do século XIX e começo do século XX, a imagem do chocolate, especialmente na Europa, foi “escurecida” de diversas maneiras.

Os especuladores buscavam novos cantos para o plantio do cacau, especialmente devido à turbulência que ocorria na produção do chocolate na America Latina. Através de vias imperiais, o cultivo do cacau se alastrou até colônias europeias no continente Africano e especialmente colônias holandesas na Indonésia. Quase no início da exploração europeia, as plantas começaram a circular no que se tornaria o mundo colonial (aparentemente mudas de cacau mexicanas foram levadas à Indonésia já em 1515), mas no século XIX isso passou a ocorrer sistematicamente.

Os pioneiros foram os portugueses, que, logo antes de sua colônia brasileira se tornar independente, levaram estacas de cacau forasteiro à sua colônia na ilha de São Tomé, próximo à costa oeste da África, em 1819. Durante as próximas décadas, o cacau se espalhou primeiramente para outros territórios portugueses, incluindo a ilha vizinha de Príncipe e a espanhola Fernando Pó (hoje Bioko), e mais tarde para o continente e assim para territórios franceses, alemães, e britânicos adiante.

O boom do final do século XIX no consumo de chocolate na Europa e a disputa acirrada europeia por territórios africanos são intimamente ligados. Em 1910, ano em que atingiu sua produção máxima, a pequena São Tomé era a maior exportadora de cacau no mundo. Foi fatalmente superada três anos depois pela colônia britânica Costa do Ouro (hoje Gana). Estavam sendo semeadas, literalmente, as sementes para a atual produção do cacau: especialmente após milhares de árvores de cacau serem atingidas por uma doença em 1986. Hoje, a líder em produção, Costa do Marfim (que não exportava cacau até 1904), e Gana, juntas são responsáveis por 70% da produção mundial.

Este deslocamento na economia do chocolate não passou desapercebido por consumidores. Como parte da absorção do produto nas fantasias nacionais dos consumidores, o chocolate se tornou uma lente através da qual os europeus podiam ver seu império. As autoridades imperiais na Alemanha e na Bélgica em especial enfatizavam a negritude do chocolate. Doces de creme cobertos de chocolate ficaram conhecidos como Negerkusse (“beijo de negro” – uma expressão, alias, emprestada dos franceses), e Mohrenkopfe (“cabeça de mouro”), nomes que carregaram até muito recentemente tanto na Alemanha quanto na Holanda. A marca alemã Sarotii tem como logotipo o “Mouro Sarotti”, que permanece até hoje uma das figuras mais reconhecidas entre as marcas alemãs. A figura, apresentada em 1918 – e não por coincidência por volta da mesma época em que a Alemanha perdeu suas colônias – é de um criado negro usando trajes mouros. Antigamente a figura também era racialmente caracterizada, com olhos esbugalhados e lábios vermelhos bem carnudos. Enquanto a imagem na verdade é uma homenagem ao endereço da sede da empresa, na Mohrenstrasse de Berlin (Rua do Mouro), sua popularidade se deve muito mais aos desejos e fantasias coloniais dos alemães. É interessante notar que, em 2004, o “Mouro” foi transformado no “Mago dos sentidos” da Sarotti – sua pele foi clareada e sua bandeja de serviçal foi substituída por estrelas mágicas – assim substituindo as fantasias raciais sobre o africano servil por fantasias igualmente raciais sobre o sensual e mágico Oriente.

Da mesma forma, o chocolatier belga Charles Neuhaus batizou sua nova fábrica de chocolate de Cote d’Or (Costa de Ouro) após voltar de uma viagem de prospecção de cacau à colônia homônima, em 1883. A embalagem de seu novo chocolate apresentava uma mescla de símbolos exóticos africanos: um elefante, uma pirâmide e uma palmeira, este último o único que realmente poderia ser encontrada no oeste da África. A empresa (hoje subsidiaria da Kraft Foods) ainda orgulhosamente emprega os mesmos símbolos, especialmente o elefante, hoje como demonstração da “experiência exótica” e, paradoxalmente, a tradição e permanência do produto.

Enquanto as embalagens e o marketing levavam o consumidor europeu a fantasiar com mundos exóticos onde se cultivava o cacau, quando o produto final chega de volta aos países africanos (o que, até hoje, é relativamente raro), representavam aos consumidores africanos a essência do requinte metropolitano e a influência civilizadora do império. Uma imagem conhecida dos shows de aventura colonial mostram os colonizadores tornando a colônia mais aconchegante com produtos alemães, especialmente o espumante Mumm e o chocolate Stollwerck. Já menos otimista, uma propaganda da Fry’s do começo do século XX mostra um engradado de chocolate que se salvou do naufrágio de um navio Britânico (uma imagem ambígua na melhor das hipóteses, dada a associação da Fry’s com a Marinha Real Britânica) e foi levado pelas ondas à praia africana, onde está cercado por nativos de pele escura que o admiram boquiabertos. Também em “casa”, o chocolate mostrava aos europeus a benevolência do império. A Banania, conhecida bebida de banana e chocolate na França, tem na embalagem um soldado senegalês que diz, “Y’a Bon” (É Bom), que une, em uma figura só, o “poder negro” do chocolate e a influência civilizadora e benevolente do império.

A fantasia colonial foi também repetidamente desmascarada pela amarga realidade. O trabalho escravo, especialmente por africanos capturados e transportados para o outro lado do atlântico, se tornou parte fundamental do cultivo do cacau durante o século XVIII, especialmente no Caribe e na costa leste da América do Sul. Aqueles que se opunham ao tráfico de escravos já há muito conheciam suas ligações com a indústria chocolateira, e empresários Quakers como o Cadbury se esforçavam pela sua abolição. Porém a abolição foi um processo lento, longo e complicado que se arrastou durante todo o século. Enquanto o tráfico de escravos foi proibido no início do século, de jure ou de facto através de bloqueios britânicos ou conflitos revolucionários, a escravidão em si continuou. A Colômbia oficialmente aboliu a escravidão em 1851 e a Venezuela (aonde, devemos lembrar, os latifundiários se rebelaram, em parte, para manter seus escravos) em 1854. Os portugueses demoraram até 1875. De qualquer maneira, nós veremos que a abolição oficial da escravidão não necessariamente acabou com a escravidão. As leis muitas vezes eram ignoradas, ou novos sistemas legais de trabalho forçado eram criados. Seja como for, o trabalho escravo continuou a produzir grande parte do cacau no Brasil até meados de 1880, e até mais tarde no oeste da África. De muitas maneiras a escravidão não foi tirada da indústria do cacau, mas sim recolocada. De uma maneira, foi isto literalmente o que aconteceu. A medida que o tráfico transatlântico de escravos diminuiu e secou durante o século, os territórios no oeste da África procuraram outro “commodity” para substituir o escravo na exportação, e o cacau, muito popular, se tornou uma excelente opção.

Os portugueses levaram, junto com o cacau, seu sistema de trabalho forçado das plantações no Brasil às suas colônias no oeste da África. Uma vez que o tráfico de escravos foi oficialmente abolido, já não era mais viável atravessar o Atlântico, mas em sua fonte, no oeste da África, ainda era funcional pois permanecia invisível aos olhos internacionais. Um escândalo abalou a indústria de chocolate britânica no começo do século XX, depois que o jornalista Henry Woodd Nevinson viajou até as colônias portuguesas de São Tomé e Angola, em 1905, a fim de investigar boatos de que a prática da escravidão ainda estava em vigor nestes lugares. A Cadbury, que há muito comprava o cacau de São Tomé, estava investigando os boatos quando o relatório – e fotos – de Nevinson foram publicados, primeiro na revista Harper’s Monthly Magazine, e depois em seu livro A Modern Slavery. A Cadbury foi acusada de ser conivente com a escravidão. Em 1908, a Cadbury Bros. processou o jornal Standard, de Londres, por difamação após publicarem um artigo no qual acusavam a empresa de hipocrisia em continuar a comprar o cacau de São Tomé. No julgamento que seguiu, a Cadbury argumentou que apesar de estar ciente de alguns abusos de trabalho, sua posição como comprador de cacau era o que lhe dava algum poder para ajudar a melhorar as condições de trabalho (este argumento seria usado novamente em conflitos na África do Sul, bem mais tarde). O júri votou a favor da Cadbury, mas a publicidade não foi de todo boa, e a indenização no valor de um farthing (moeda inglesa) por danos não demonstrava muito altruísmo por parte da empresa.

O que pode ser chamado de um último suspiro esquizóide do longo século XIX na história do chocolate pode ser visto em uma campanha de marketing holandesa de 1958. A propaganda começa com as recomendações padrão para as mães darem apenas chocolates “puros” e “nutritivos” aos seus filhos: “Mamãe, dê a eles algo gostoso. Dê a eles algo nutritivo também…. Chocolate granulado Venz. Assim eles comem o chocolate mais puro – repleto de gorduras, proteínas e cálcio altamente digeríveis.” Ao lado da imagem do produto, completo com a imagem da criança feliz na embalagem, tem uma imagem dos indonésios nativos, generosa e gentilmente oferecendo seus frutos de cacau. Como sempre, esta imagem esconde uma relação bem mais complexa do que a aparente. Esta visão da benevolência maternal/colonial veio, ironicamente – mas provavelmente não coincidência – no mesmo ano que o governo da Indonésia nacionalizou a indústria holandesa e os holandeses foram formalmente expulsos de sua ex-colônia. Como em tantas outras circunstancias, foi o chocolate a ferramenta escolhida para “adoçar” os âmagos – ao menos simbolicamente.

Trecho do capítulo 3 do livro “Chocolate A Global History”, de Sarah Moss a Alexander Badenoch, publicado pela Reaktion Books, Londres 2009.