Skip to content
Revista Amarello
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Entrar
  • Newsletter
  • Sair

Busca

  • Loja
  • Assine
  • Encontre
#6VerdeCulturaSociedade

Opção pela Hipocrisia

por Fernando Grostein Andrade

Muitas gerações cresceram sob o lema de que o Brasil é o país do futuro; todas, no “passado” ou no “presente”, enfrentando um mesmo obstáculo: a hipocrisia. Explico: temos uma das cargas tributárias mais altas do mundo, e não é raro irmos a um médico e ouvirmos a recepcionista perguntar – “Com nota ou sem?”. Não é raro conhecer alguém que “tem que” sonegar. Não é raro saber de uma campanha eleitoral feita com “recursos não contabilizados”. Ou encontrar um camelô vendendo DVD pirata na porta de um cinema (o que, para alguns, também resulta da alta carga tributária). Com o assunto drogas, não poderia ser diferente. E custa vidas.

Nos últimos dois anos estive à frente do documentário Quebrando o tabu, em que pude registrar um pouco do trabalho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no combate ao consenso da “guerra às drogas”. Viajamos por dezoito cidades, passando por presídios, pelo Capitólio e até por um campo de papoula das FARC. Entrevistamos 168 pessoas, de chefes de estado, como Bill Clinton, até um menino, morador de favela no alto de um morro, que nunca se envolveu com o tráfico mas que ficou paralítico em decorrência de uma bala perdida.

Um episódio, contudo, não me sai da memória: um delegado que veio me dar uma bronca “por estar fazendo um desserviço à sociedade brasileira com o filme”. Afinal, o documentário defende que dependentes sejam tratados como pacientes, e discute uma porta de acesso à regulamentação da maconha. Meses depois, esse mesmo delegado seria preso por revender armas apreendidas a traficantes. Se é inocente, não sei; mas me pareceu mais um a manifestar pura hipocrisia.

Os motivos são vários: como alguém experimentado em combate, sabe quantos jovens morrem e matam com armas de guerra no tráfico de drogas; a maioria composta de afrodescendentes – como uma visita a qualquer cadeia no Brasil (e até nos EUA) pode revelar. Ele sabe também que esses jovens integram uma engrenagem perversa, peões para uma indústria que lucra, e muito. No Rio de Janeiro, existe um depósito com mais de cem mil armas apreendidas, de carabinas da vovó a fuzis e bazucas de guerra, a maior parte usada em disputa territorial entre traficantes. O delegado sabe, pois, que dificilmente alcançaremos o objetivo da ONU: um mundo livre de drogas. Sim, existem usuários e dependentes de todas as classes sociais, cores, preferências sexuais e profissões. Apesar de ser claro que podemos diminuir o dano causado pela droga, é utópico pensar que seja possível erradicar o consumo. No entanto, a opção do delegado, e da sociedade, é pela hipocrisia; afinal, que “se danem” essas vidas perdidas: o importante é manter a moral e os bons costumes em alta. Custe o que custar.

No caso específico da maconha, a hipocrisia é maior. Segundo a revista médica inglesa The Lancet, ela é menos nociva que o álcool e o tabaco – que são regulamentados. Hoje, cada vez mais, é usada como remédio. A heroína e a cocaína já foram legais e utilizadas como tal. Mas, dado o alto grau de compulsão que provocam, foram trocadas por medicamentos mais modernos, sem esses efeitos colaterais perigosos tão apreciados por alguns. Já a maconha vai na contramão. Dezesseis estados americanos já legalizaram sua versão medicinal.

Documentei na Holanda o único centro de produção de maconha medicinal legal da Europa. Tive de assinar um contrato para nunca revelar sua localização e pude até acompanhar a inspeção do governo por qualidade farmacêutica no processo. Entra-se ali só com roupa cirúrgica estéril. A farmacologista me explicou que as aplicações do produto vão desde um simples analgésico até o estímulo ao apetite em doentes terminais ou o combate à esclerose múltipla. Já foi até usado, num passado distante, pela rainha, de modo a enfrentar cólicas menstruais, ou por George Washington, para amenizar a dor de dente. A lista de doenças contra as quais pode ser utilizado é imensa. E, para livrar o doente do risco causado por fumar, existia até um aparelhinho, o Volcano, que emitia um vapor-d’água muito quente, que passava pela maconha e produzia um vapor cannabico.

No Brasil, acompanhei a disputa de dois grandes médicos pelo direito ou não de estudar a maconha medicinal. Para um deles, grande bobagem; para o outro, proibição inquisitorial que impedia o avanço científico. Um médico, hoje, que queria estudá-la no país será preso e possivelmente terá a reputação abalada; isso, mesmo que esteja examinado uma forma de livrar as pessoas da terrível dependência do crack – como é o caso de um renomado especialista brasileiro que teve suas pesquisas impedidas.

Em Los Angeles, pude registrar uma paciente que conseguiu reduzir, de oito compridos para um, a dose de um potente e perigoso remédio para dor ao combiná-lo com maconha medicinal. Outro, com câncer, recuperou o sono e sentenciou: “Não quero que o governo decida como vou aliviar minha dor”. Mas o que era apenas uma solução para dar acesso à maconha medicinal acabou se tornando mais.

O sistema funciona assim: um médico precisa receitá-la. De posse da receita, é emitida uma carteirinha que permite portar o produto. Com a carteirinha, o paciente vai até um dispensary e pode comprar sua maconha em paz, escolhendo inclusive a variedade mais adequada a sua necessidade. O tipo “sativa” dá disposição e energia. O “indica”, sono e preguiça. E todos dão fome.

Não é necessário ser brasileiro para imaginar o que aconteceu. Uma legião de médicos charlatões apareceu, um mar de carteirinhas foi emitido e muita gente que desejava apenas “fazer a cabeça” sem ser incomodado pela polícia encontrou ali seu refúgio. A sociedade americana, óbvio, sabe disso. Hipocrisia ou pragmatismo? Será que a maconha medicinal se tornou a medida socialmente aceitável para contornar o moralismo e dar um primeiro passo rumo ao fim da guerra às drogas? Não sei, mas já começo a pensar que talvez nem toda a hipocrisia seja necessariamente hipócrita.

Gostou do artigo? Compre a revista impressa

Comprar revista

Assine: IMPRESSO + DIGITAL

São 04 edições impressas por ano, além de ter acesso exclusivo ao conteúdo digital do nosso site.

Assine a revista
Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Por que o fim do mundo virou fetiche visual?

Design

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

O mal-estar no feminismo

#28 O Feminino Cultura

por Juliana de Albuquerque Conteúdo exclusivo para assinantes

Quem tem tempo para o tempo?

Cultura

por Revista Amarello

Reescrevendo “…E o Vento Levou”: A morte do Grão-Pará e o parto do Império do Brasil

# Terra: Especial 10 anos Cultura

por Márcio Souza

Eu sou um homem (I am a man)

#37 Futuros Possíveis Artigo

por Zé Manoel

Liberdade e o que dois tipos opostos de viajantes aprendem sobre ela ao visitarem a África

#12 Liberdade Cultura

por Bruno Pesca Conteúdo exclusivo para assinantes

Da gargalhada à crítica: no Brasil, rir é coisa séria

Cultura

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

O gozo de perder: ilusão e poesia com Pessoa

#30 Ilusão Artigo

por Roberta Ferraz Conteúdo exclusivo para assinantes

Tema livre

#12 Liberdade Cultura

por Hermés Galvão Conteúdo exclusivo para assinantes

Eu preciso destas palavras escritas

#3 Medo Arte

Uma festa de muitos Brasis

Cultura

por Revista Amarello

o ponto

#51 O Homem: Amarello 15 anos Literatura

por Bruno Cosentino Conteúdo exclusivo para assinantes

  • Loja
  • Assine
  • Encontre

O Amarello é um coletivo que acredita no poder e na capacidade de transformação individual do ser humano. Um coletivo criativo, uma ferramenta que provoca reflexão através das artes, da beleza, do design, da filosofia e da arquitetura.

  • Facebook
  • Vimeo
  • Instagram
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Amarello Visita

Usamos cookies para oferecer a você a melhor experiência em nosso site.

Você pode saber mais sobre quais cookies estamos usando ou desativá-los em .

Powered by  GDPR Cookie Compliance
Visão geral da privacidade

Este site utiliza cookies para que possamos lhe proporcionar a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.

Cookies estritamente necessários

O cookie estritamente necessário deve estar sempre ativado para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.