Um menino que mata colegas na escola em uma quinta-feira de 1999, alguns dias antes de completar dezesseis anos. O relato de sua mãe, de como entende a atitude de uma pessoa que saiu dela e a quem dedicou tempo e amor. Amor? Será que todos os seres têm mesmo capacidade de entender e absorver o amor? A maldade é uma característica adquirida ou congênita? Quanto o meio é capaz de influenciar o desenvolvimento do caráter de alguém?
Sempre achei que uma criança que cresce em um ambiente de amor, compreensão e segurança tem pelo menos 50% das ferramentas de que vai precisar (talvez sejam 80%, mas, depois do livro, tive de rever esses números). Os valores ali definidos, ou adquiridos, serão carregados para a vida e transportados para todas as relações estabelecidas no futuro: amizades, amores, filhos, netos.
Questionar o amor por um filho parece algo cruel. Somos instintivamente condicionados a amar um filho mais do que qualquer outra coisa. Eles são uma extensão de nós mesmos.
Eva e Franklyn tinham um casamento feliz. Gostavam um da companhia do outro, moravam em Manhattan, eram bem-sucedidos profissionalmente. Ela montou uma empresa de guias de viagem de baixo orçamento e viajava o mundo todo em busca das melhores recomendações. Teve contato com outras culturas e voltava para os braços de seu marido sempre renovada por seu aprendizado. Ele era um produtor de locação para comerciais de carros. Vivia contente com sua liberdade enquanto viajava pelo campo de janelas abertas, ouvindo música em sua picape, em busca do lugar perfeito.
Ela não queria ter filhos. A relação de afeto, cumplicidade, companheirismo e amor a deixava mais do que satisfeita. Não sabia se estava disposta a abrir mão desse equilíbrio. Ele queria mais. Precisava de mais. Sentia falta de poder transmitir amor para um filho, poder brincar no terraço, levar para as aulas, fazer o dever de casa e ver uma pessoa independente de você, ao mesmo tempo feita da sua própria matéria, tomar seus passos na vida.
Amor incondicional. Acho que esse é um mito e, paralelamente, um anseio de todos nós. Será que o amor de um pai é que o se aproxima mais desse ideal? Uma coisa é certa: na vida, essa é a única decisão para sempre. A ideia de que teremos uma continuidade nesse mundo é muito atraente. Nos ajuda a aceitar a morte. Nos ajuda a prezar a vida.
Kevin nasce em meados dos anos 1980. Franklyn insiste em que se mudem para uma casa fora da cidade, de modo a usufruírem das melhores escolas e de um jardim. Mais uma vez contrariada, Eva se rearranja para incorporar essa nova vida. Enquanto está em uma viagem a trabalho pela África, o marido compra uma casa que, para ela, é um pesadelo. O contrário do que considerava como lar.
Passada a tempestade, ele decidiu se afastar por um tempo do trabalho para cuidar do bebê. No período em que ela tinha viajado, tentaram algumas babás, mas nada muito duradouro. Kevin era um bebê muito insatisfeito. Urrava durante todo o dia, sem que fosse por sono, fome, frio ou dor. Nada o fazia contente. Só ela poderia assumir aquele fardo. O único momento de alívio era quando o pai chegava em casa e o menino mudava radicalmente de atitude. Ficava meigo e obediente.
Conforme vai crescendo, o comportamento diferente do menino se torna mais e mais evidente. Ele insiste em não tirar fraldas até os seis anos de idade. Não se envolve com atividade esportiva alguma, tampouco com música, filme, livro, brincadeira ou trabalho criativo. Simplesmente não tem interesses e não parece entender por que os outros gostam de coisas tão bobas.
A dificuldade de se conectar com esse ser faz Eva insistir em ter um novo filho. Precisa responder a si mesma sobre se é capaz de amar. Será que o problema é com ela? Mesmo com mais de quarenta anos, engravida; nasce uma menina, Celia. Dessa vez, a experiência da maternidade é diferente. Celia é uma menina adorável, que responde com sensibilidade a todos os estímulos trazidos pela mãe. Ela se encanta pelo mundo nos seus menores detalhes. Kevin não gosta muito da ideia de ter uma irmã, e apronta tudo que está a seu alcance para que essa criança não se sinta feliz.
Acho que um das coisas mais tocantes do livro é a forma da narrativa. Eva escreve cartas ao marido que está afastado. A sequência dos fatos é contada por ela. As emoções, as frustrações, a raiva e sua enorme tristeza. Sabemos que Celia e Franklyn foram afastados dela, e que agora vive uma vida simples, em uma casa pré-moldada em um subúrbio qualquer, e que mantém um emprego em uma agência de viagens da região. Ela relata sua nova vida ao marido, suas visitas a Kevin na penitenciária.
As cartas lhe servem como instrumento para entender o acontecido e qual a parcela de sua culpa na desgraça. É estarrecedor e muito, muito comovente. Apesar de sabermos que a genética tem papel fundamental na formação de um ser, é demasiado frustrante assumir que se perdeu o controle sobre uma tragédia.
Certamente esse livro não é para todo mundo.
Precisamos falar sobre Kevin
por Ana Paula Rocha