Num corredor, no segundo andar do Museu da Chácara do Céu (em Santa Teresa, no Rio), está exposta uma carta de Wladimir Alves de Souza – o arquiteto da casa em que hoje funciona o museu – a Raymundo de Castro Maya, industrial, esportista, editor e colecionador de livros, que morou ali. Não me lembro exatamente a que Wladimir se referia, mas, em algum momento, escreve aproximadamente assim: “você, que também é obcecado por qualidade, vai adorar”. Na biblioteca da casa, os livros da sociedade os Cem Bibliófilos do Brasil, fundada por Castro Maya, com edições de, por exemplo, Campo Geral, de Guimarães Rosa, ilustrado por Djanira, confirmam a obsessão do antigo morador.
Na William Morris Gallery, em Londres, recentemente reaberta na antiga residência em que o – é também difícil enquadrá-lo em apenas uma profissão – artesão, empresário, escritor e editor passou a infância, uma pequena placa embaixo de um tapete desenhado pelo próprio explica o que o incomodava: “The poor design and quality of many Victorian machine-made goods angered Morris”. Para a Kelmscott Press, a editora que fundou, ele criou fontes inspiradas em estilo do século XV, e sua edição de The Works of Geoffrey Chaucer é não raro considerada como o mais bonito livro já publicado.
São várias as coincidências entre Castro Maya e William Morris: os dois editaram livros; gostavam de tapeçaria; eram empresários, apesar de em setores bem diferentes (Maya em varejo e óleos vegetais; Morris em objetos de decoração); e as casas em que moraram se converteram em pequenos museus. Em ambos os museus há uma discreta lembrança de um atributo muito apreciado pelos dois, mas ultimamente um pouco fora de moda: a qualidade das coisas.
A palavra foi tão desgastada nos anos noventa (“qualidade total” etc.) que hoje quase pega mal dizer que alguma coisa tem mais qualidade do que outra. Mas é preciso resgatar seu significado. A primeira definição do Caldas Aulete ajuda: qualidade é “o que faz com que uma coisa seja tal como se considera”. Porque é justamente isso – a essência, a natureza das coisas – que me parece camuflado por tanto discurso, tanta propaganda. Entre tanto barulho, a qualidade se perdeu.
Em propaganda, o exemplo da operadora de celular talvez seja o mais comum: a empresa não consegue completar uma ligação e gasta fortunas anunciando que conecta pessoas. E esse tipo de frustração acontece de forma muito parecida em relações mais, digamos, pessoais, se considerarmos o contraste entre as experiências extraordinárias que algumas pessoas anunciam no Facebook, por exemplo, e o tédio que é sua presença física. As coisas – ao contrário do que a definição do Aulete sugere – estão ficando longe demais do que se considera que sejam. Por mais insistente que seja, e mesmo que por algum tempo se consiga confundir algumas pessoas, não há discurso que substitua completamente a realidade.
É verdade, claro, como recomendou Aristóteles, que não basta ser honesto: é preciso parecer honesto. As coisas (e as pessoas) precisam mesmo parecer o que essencialmente são. Mas o problema não é mais esse: a questão é essa excessiva dedicação hoje em dia em parecer bom – praticamente se esquecendo da importância de ser bom. O exemplo mais óbvio dessa tendência é o que fizeram com o Sonho de Valsa: estragaram o produto e redesenharam a embalagem.
Esse bombardeio diário de pequenas enganações, acho, já comprometeu grande parte da sensibilidade das pessoas mais atentas. O mundo está barulhento, poluído visualmente, e esbarramos em promessas e promoções a cada passo. Não é de propaganda – não de mais discurso – que sentimos falta. É de que seja sincero: como parece que foi nos casos de Castro Maya e de William Morris. Esses dois museus, portanto, podem não apenas nos lembrar do que esses homens fizeram há mais ou menos cem anos, mas também nos estimular a fazer coisas com mais qualidade nos próximos cem.
Eduardo Andrade de Carvalho é sócio da Moby Incorporadora, formado em administração de empresas pela FGV e está muito interessado em arquitetura.