Monteiro Lobato, em 1915, aos 33 anos, publicou um artigo, em O Pirralho (então dirigida por Oswald de Andrade), em resposta a uma pergunta que a revista fizera a alguns intelectuais: “Foi Fradique Mendes um tipo representativo de vida superior?” “Rico, belo, inteligente, criador, homem de ação, bondoso, forte, fino, elegante, amável, amado, saúde de aço, tipo 2 de boa torração…”, Lobato escreveu, “Ora, tudo isso é ainda ser menos do que Fradique”. É: porque Fradique foi também um homem livre.
(A correspondência de Fradique Mendes, o último livro publicado de Eça de Queiroz, é dividido em duas partes: na primeira metade, um amigo e biógrafo nos apresenta o personagem; na segunda, lemos suas cartas. Fradique é um personagem fictício, apesar de inspirado em amigos de Eça, incluindo o brasileiro Eduardo Prado – e talvez também no homem que Eça quisesse ser.)
Fradique Mendes foi livre de tudo que pudesse limitar o movimento de seu espírito. Primeiro, foi educado na casa da avó, uma “velha estouvada, erudita e exótica colecionadora de aves empalhadas”, que lhe deixou uma enorme herança nos Açores: espécie de “carta de alforria às contingências pecuniárias que a vida moderna exige”, como escreveu Lobato, o que lhe permitiu dedicar a vida aos assuntos que mais lhe interessassem. Fradique foi livre, em primeiro lugar, financeiramente.
E Fradique se interessou por tudo. Na casa da avó, foi educado por um frade beneditino, um coronel francês e finalmente um professor alemão. Com eles, respectivamente, se alfabetizou em latim, traduziu Voltaire e entendeu a Crítica da razão pura antes da adolescência. Depois, estudou Direito “nas cervejarias que cercavam a Sorbonne” e, quando deixou o Quartier Latin, saiu pelo mundo em viagens de “Chicago a Jerusalém, desde a Islândia até o Saara, sempre empreendidas por uma solicitação da inteligência ou por ânsia de emoções”. Fradique Mendes circulou pelo mundo com naturalidade e com uma curiosidade infinita: também foi livre no sentido, digamos, geográfico do termo.
E Fradique “folheou e leu o mundo atentamente como um livro cheio de ideias”. Ele se dedicou a compreender todos os detalhes das civilizações mais distantes e exóticas do planeta – à procura do “fundo real das coisas”. Frequentou o mundo árabe constantemente, visitou presídios na Sibéria, viveu com culturas quase extintas na América do Sul. E se transformava num cidadão perfeito dos locais que visitava. Se converteu ao babismo quando visitou a Pérsia, frequentou o clube revolucionário Panteras de Batignolles em Paris, participou de rituais positivistas em Londres, foi confidente do príncipe Koblaskini para se converter ao budismo na Índia: “cometa errando através de ideias, embebendo-se convictamente delas”, como diz o seu biógrafo, de cada uma Fradique assimilou a sua “parcela de verdade”. E, apesar de educado no mais rigoroso esquema da tradição universal, inclusive culturalmente Fradique Mendes foi um homem livre.
Esse seu exercício intelectual – a sua busca por essa Verdade no mundo – era extremamente sincero, e a elasticidade do seu espírito não lhe permitia satisfazer-se simplesmente com um sistema, uma ideologia – ou uma opinião pronta. Fradique desqualificava um Baudelaire (intelectual demais), um Hugo (de um “tumultuoso lirismo”), com total naturalidade. Era contra essas pessoas que tratam as ideias como regras de etiqueta – como se fossem feitas para agradar. Fradique foi, portanto, um grande inimigo das ideias feitas.
Mas Fradique nunca deixou que o seu compromisso com os assuntos mais graves da vida secassem o seu espírito ou comprometessem a sua delicadeza social. Ao contrário: estava tão à vontade discutindo a noção do Absoluto entre professores alemães numa cervejaria filosófica em Tubingen quanto, no Zimbábue, entre a tribo dos Matabeles, comparando as vantagens de uma Express e uma Winchester entre caçadores de elefantes. Nunca você encontrará alguém, como diz seu primo ao narrador, “tão simples, tão alegre, tão fácil”. Fradique nunca foi seduzido a praticar um estilo intelectual e nem se considerava um sábio, um filósofo. Antes, diz Fradique: “só me resta ser, através das ideias e dos fatos, um homem que passa, infinitamente curioso e atento”.
Atento também às mulheres, é verdade. “Uma alma extremamente sensível, servida por um corpo extremamente forte”, Fradique costumava encerrar o seu dia, depois de um passeio de carruagem pelo Bios, entre o “efêmero feminino”, cuja influência foi, segundo seu biógrafo, “suprema na sua existência”: “Fradique amou mulheres; mas fora dessas, e sobre todas as coisas, amava a mulher”, que considerava um “organismo superior”, e sobre as quais tinha opiniões e classificações originais, como a que as divide em “mulher interior” e “mulher exterior”. Se foi amado? Magnificamente, conclui no final seu biógrafo. Porque “as mulheres encontravam nele esse ser, raro entre os homens – um homem”. Um homem livre.