Na abertura de Os Gregos e o Irracional (1951), obra decisiva de E.R. Dodds, durante uma visita ao Museu Britânico, um professor de cultura clássica observa as esculturas do Parthenon quando é abordado por um rapaz que confessa não conseguir admirá-las: parecem-lhe “extremamente racionais”. O professor simpatiza: “Creio que o entendia. O que o rapaz estava dizendo era algo que já havia sido dito antes (…) Para uma geração cuja sensibilidade havia sido treinada nas artes africana e asteca, e através de obras de homens como Modigliani e Henry Moore, a arte dos gregos (…) é mesmo propícia a se mostrar destituída de certa consciência do mistério, e de uma capacidade para penetrar em níveis mais profundos e inconscientes da experiência humana.”
Certamente houve um boom de interesse na arte das civilizações antigas e das culturas tribais, sobretudo na Europa da primeira metade do século XX, quando a arqueologia se desenvolveu cientificamente, sítios foram descobertos e abertos ao público, a etnografia tornou-se mais respeitosa e cautelosa, e o turismo transnacional se estabeleceu. Artistas de várias orientações beberam em fontes não-clássicas: as artes tribais da África e da Oceania, assim como a arte pré-histórica e pré-colombiana, foram, cada qual a seu modo, influências decisivas para pintores e escultores do século passado. E muitos aspectos dessas artes não-clássicas produzem sim certa consciência de mistério: elas parecem falar mais diretamente a um mundo pós-freudiano; são, muitas vezes, desconcertantemente modernas, mais oníricas, emotivas, por vezes, violentas, uncanny.
Ocorre que o intuito do famoso livro de Dodds era questionar um pouco essa impressão de realismo racional frio da arte grega. Assim como podemos olhar mais atentamente para a arte greco-romana e enxergar nela tensões e dimensões insuspeitas de sentimentos complexos e profundos, também podemos encontrar uma majestade de composição quase clássica e um diálogo imediato com nossos hábitos de cultura visual nas artes de povos bastante distantes de nós. Os murais de Bonampak, no México, constituem um perfeito exemplo disso.
Na opinião de muitos, a arte maia é uma das mais belas do Novo Mundo e rivaliza com a grega em sua autoconsciência de esplendor, seu orgulho à flor da pele na ciência de seu impacto visual e planejamento atento que ordena as composições. Há nela também um extremo investimento em adornos curvilíneos e as chamadas pirâmides são site specific: as edificações e planos urbanos são desenhados para dialogar com a paisagem natural e geológica que os rodeia e com as estrelas e fenômenos celestiais que os encobrem. Parte do prazer de visitar os diferentes sítios é essa plasticidade do encontro entre os centros urbanos e seu ambiente natural, bem como a compreensão da racionalidade que os ordena: cada ruína maia tem seu charme particular e se apresenta como uma espécie de obra de arte total.
Bonampak é um sítio relativamente menor, na região centro-leste do estado de Chiapas (México), quase fronteira com a Guatemala, e próximo de outros centros maias poderosíssimos no passado, que viviam em perpétuo estado de batalha pelo domínio cultural da região: a majestosa cidade de Palenque, a belíssima e imponente Toniná e a misteriosa Yaxchilán, mergulhada na floresta densa, onde até hoje vemos serpentes e morcegos passeando pelas ruínas e os rugidos dos macacos bugiu assombram as estruturas templares. Embora os índios Lacandones que habitam a região (e que ainda falam uma língua maia) já conhecessem o sítio, foi apenas em 1946 que três norte-americanos descobriram aquilo pelo qual Bonampak ficou famoso: no interior da chamada Estrutura 1 (ou Templo dos Murais), uma fenda na construção havia deixado entrar água pluvial por séculos, formando uma translúcida crosta de carbonato de cálcio que, afortunadamente, preservou os murais mais belos que temos dos maias, considerados hoje um dos pináculos de sua arte e uma das obras-primas da humanidade.
Um dos elementos mais atraentes desses murais é uma cor de tonalidade rara: o renomado azul maia, criado por volta de 300-400 d.C. através da combinação de elementos orgânicos e inorgânicos: um corante índigo obtido a partir das folhas da planta anileira (de onde se obtém também o anil) e paligorsquite, um mineral argiloso. Esse pigmento azul não era apenas um sinalizador de luxo entre os maias, como o cacau e o jade, mas também uma marca de refinamento estético.
O azul maia é uma tonalidade célebre (como o azul egípcio e o International Klein Blue) e oscila entre o ciano e o esverdeado. Dependendo da quantidade de pigmento utilizado, do suporte onde é pintado e da incidência de luz, é possível obter um leque de sutis variações em seu espectro. Em Bonampak o pigmento está também misturado a azurita, um mineral tão raro quanto caro, obtido no extremo norte do México, a mais de 1.200 km de distância.
O Templo dos Murais é composto por três câmaras pequenas (apenas três pessoas podem entrar por vez) cuja função parece ter sido primordialmente estética: a contemplação das artes que elas guardavam. A primeira sala indica uma rebuscada cerimônia de ascensão ao trono da cidade, à dedicação de um templo e à apresentação de uma criança à corte e ao sacerdócio. A segunda sala apresenta uma sanguinária cena de batalha e sacrifício de cativos. Por fim, a terceira representa novas festividades. É possível identificar claramente um projeto nos murais, isto é, uma concepção artística e um grupo de pintores guiados por essa concepção. Mas os murais nunca foram completados em sua época e a unidade narrativa deles é debatida até hoje. Bonampak teve uma vida relativamente breve (foi ocupada por pouco mais de 200 anos) e testemunhou tanto o ápice da cultura maia quanto seu grande declínio.
Em 1994, o levante zapatista tornou seu acesso extremamente difícil. Em 1996, após complicadas negociações, a universidade de Yale iniciou um projeto de documentação detalhado e científico dos murais. No ano passado, o resultado desse projeto foi publicado: o gigantesco e deslumbrante livro The Spectacle of the Late Maya Court: reflections on the Murals of Bonampak (editado por Mary Miller & Claudia Brittenham: INAH e Texas University Press, 2013).
Os murais estão abertos ao público novamente. Fazia tempo que eu queria vê-los ao vivo. Estive lá em abril deste ano com minha irmã. Estávamos exaustos depois de visitar alguns sítios e passar horas no carro. Quando entramos no Templo dos Murais nossa primeira reação foi dizer um para o outro “não deveríamos estar aqui!”. Rimos. Quais são as chances de essas cores sobreviverem à ação do tempo? Conversamos bastante sobre eles — temos um gosto muito semelhante —, e nunca vou me esquecer desse momento com ela. O azul maia é mais duradouro do que se imagina. Bonampak viveu pouco. Seus murais renasceram.