#16RenascimentoCulturaSociedade

Conversa com Fernando Schüler

Em um período de tempo extremamente curto, uma única cidade, a Florença do século XV, deu ao mundo mais pintores, arquitetos, políticos e intelectuais do que enormes regiões do globo durante séculos. E não foi a primeira vez que o fenômeno aconteceu: a Atenas do século V a.C. nos deu de Sófocles a Péricles, de Sócrates a Aristófanes. Obviamente, não são apenas as chamadas belas artes que são capazes de nos impactar desse modo: o fenômeno econômico-social da Alemanha ou do Japão do pós-Guerra, ou ainda a força criativa do Vale do Silício nos Estados Unidos são exemplos de que, para além das artes e da vida cultural, da economia à política, o florescimento de grandes sociedades é um fenômeno tão recorrente quanto fascinante, sempre marcado por uma aura de mistério.

Pois bem: o que falta (se é que falta) ao Brasil para viver uma explosão criativa que chancele o florescimento de nossa sociedade? Que energias precisaríamos mobilizar para que experimentássemos os picos de produção intelectual e econômica que caracterizaram muitas das épocas mais marcantes da Grande História das Gentes? Foi com essa questão em mente que Eduardo Wolf e Eduardo Carvalho conversaram com Fernando Schüler, cientista político e doutor em Filosofia. Schüler traz a marca do homem renascentista na amplitude de seus interesses, que se refletem em sua atuação profissional: foi Secretário de Estado de Justiça e Desenvolvimento Social no Rio Grande do Sul (2007-2010), diretor do IBMEC-RJ (até 2014), além de ser o criador e curador do Seminário Internacional de Altos Estudos Fronteiras do Pensamento. Nessa conversa, mais do que uma análise lúcida dos potenciais e dos desafios do Brasil neste século XXI, o leitor encontrará uma visão otimista e cosmopolita sobre o que nos espera.


AMARELLO: Kenneth Clark, em sua aclamada série de documentários Civilisation, afirma que não é possível que uma civilização floresça e se mantenha sem convicção. Você usou uma expressão semelhante num debate sobre as manifestações de junho de 2013, quando afirmou que parece faltar à nossa sociedade convicção. Qual é o nosso problema em matéria de convicções?

FERNANDO SCHÜLER: É um mistério por que algumas sociedades ou civilizações apresentam certo padrão de convicção e certo grau de consenso em torno de valores e outras não. Por exemplo, por que a democracia — que é o valor fundamental em torno do qual giram nossas convicções ou falta delas — se tornou um consenso nos Estados Unidos e no mundo anglo-saxônico e na América Latina isso não aconteceu? As explicações são variadas, certamente. Eu gosto muito de observar como os valores evoluem e diria que o fazem através daquilo que o filósofo e teórico cultural Kwame Appiah chama de “revoluções morais”. Em seu livro O Código de Honra: como ocorrem as revoluções morais (Companhia das Letras), ele cita o caso dos duelos: essa é uma tradição antiga que, do século XIX para o XX, vai ser erradicada. Dia desses li uma biografia de Schumpeter, que em 1909 entrou em um duelo com um bibliotecário da Universidade de Czernowitz, onde lecionava, para defender o acesso dos estudantes aos livros da biblioteca. Isso foi motivo de um duelo de espadas, o que hoje é impensável. Diz respeito à mudança nos consensos e nas convicções de uma sociedade. No caso da sociedade brasileira, quem estuda nossa terceira república, entre 1945 e 1964, percebe como a democracia era um valor escasso no sistema político. Pouca gente, seja no governo Goulart, seja na oposição, liderada por Carlos Lacerda, acreditava na democracia como um valor estratégico. Ocorre que o ciclo militar serviu como um aprendizado, o país soube conduzir uma transição pacífica e a democracia surge como um consenso, nos anos 1980. E assim prosseguimos até hoje. Eu concordo com esse argumento de que as sociedades precisam de convicção. O problema está em saber como surgem essas convicções. Eu diria que esse é o papel da cultura, do debate público, dos intelectuais: a perspectiva de um Norberto Bobbio, de um Isaiah Berlin. A perspectiva de longo prazo e a afirmação de valores.

A: Frequentemente nos deparamos com casos claros em que a cultura Ocidental parece estar de joelhos. Um caso recente, na Inglaterra, foi a aprovação pelo órgão responsável pelo ensino superior que as universidades britânicas segreguem mulheres em sala de aula e em conferências por motivos religiosos. Se os muçulmanos quiserem, dentro das salas de aula britânicas, segregar as mulheres, eles podem fazer isso em nome do direito à diversidade cultural. Parece que a convicção quanto ao que norteava os valores ocidentais até agora saiu do horizonte. Você acha que isso é um risco que a gente corre?

FS: Diria que esse é um dos grandes conflitos do século XX. O conflito entre o lento processo de afirmação dos direitos individuais e o multiculturalismo. O final do século é a época por excelência da globalização, da integração cultural, da internet e da explosão das migrações. A quantidade de migrantes no mundo é muito maior do que há cinquenta anos, apesar de muitas vezes parecer o contrário. Nós vivemos a era da mobilidade, de trânsito, e essa legião de povos com diferentes formações culturais que se dirigem à Europa causaram um tremendo choque cultural, inclusive com um recrudescimento de movimentos conservadores e segregacionistas. Por outro lado, causaram também uma reação um pouco desbaratada da esquerda, que tende a relativizar os direitos individuais diante do fato da diversidade cultural. Esse é um conflito que vai se diluir ao longo do século XXI. E a vitória será dos direitos humanos, dos direitos individuais. Existe uma grande linha de força na cultura moderna, uma afirmação gradual dos direitos individuais. Isto está lá na visão de Kant expressa na Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita. A lenta formação de um direito cosmopolita, da grande federação das repúblicas, tem se concretizado, apesar de longos recuos, como o comunismo, o nazismo, o fascismo, as ditaduras na América Latina e agora o fundamentalismo islâmico. Compreendo estes episódios como percalços numa espécie de grande telos [fim] moderno. Não um fim como destino da modernidade, mas como uma tendência histórica que se produz a partir de razões bastante concretas: a informação que circula, os níveis de educação que crescem, as pessoas que se integram, a tecnologia que aproxima as pessoas, os níveis ascendentes de renda. Isso tudo favorece o processo gradativo de esclarecimento humano. Então é muito difícil que, daqui a quarenta ou cinquenta anos, ainda se tolere que as mulheres devam usar véu nas ruas de Paris e sejam humilhadas por seus maridos.

Numa visita recente ao Museu da Cidade de Londres, me chamou a atenção a imagem de uma criança pedindo esmolas na rua. Isso hoje é uma peça de museu em Londres. Quando Oscar Wilde foi preso, nos anos de 1890, havia crianças encarceradas com ele. As revoluções morais de fato acontecem, os costumes evoluem, os direitos se afirmam. Com contradições, com avanços, com recuos, mas é indubitável que há uma tendência positiva. Tento ser racionalmente otimista quanto a isso.

A: Com base na sua experiência, com uma atuação diversificada no poder público, como secretário de estado no Rio Grande do Sul, como empreendedor cultural, como ex-diretor do Ibmec, que tipo de forças um país precisa mobilizar para conseguir dar um grande salto cultural, econômico ou político?

FS: Tenho simpatia pela tese do economista Daron Acemoglu, a chamada visão institucionalista, segundo a qual o que define as perspectivas de um país ou região é um determinado tipo de modelagem institucional. Ela é, antes de tudo, uma tese com enorme apelo prático: a variável institucional é a que, por definição, é acessível à mudança. Não podemos mudar o clima e dificilmente mudaremos a “tradição cultural”, de uma região. As instituições são a variável sob controle. Eu acho que essa tese tem uma dupla vantagem: ela nos convida à ação e deixa claro que uma sociedade avança se consegue mobilizar as energias empreendedoras e inovadoras. No Brasil, por exemplo, há um alto custo para o empreendedorismo. Os custos de transação são muito altos, o nível de risco é muito alto, o crédito privado é escasso, embora o crédito público seja elevado. Classicamente, o empreendedor toma um risco limitado, pois o investidor toma boa parte do risco da inovação. E esse mercado não se consolidou no Brasil porque o investidor é um agente racional: ele observa o custo trabalhista, o ambiente institucional, as garantias jurídicas e de propriedade, todas aquelas características exaustivamente apresentadas no doing business, do Banco Mundial, em que o Brasil está em posição não muito vantajosa. No Brasil, um dos nossos maiores empecilhos é o custo de mão de obra — a nossa legislação trabalhista foi feita para grandes conglomerados fabris, numa época pré-internet, e continua em vigor. Eu diria que a variável institucional é a mais decisiva.

A: Como você concilia esse seu otimismo, que recai sobretudo no papel das instituições, com as avaliações de que o descontentamento das populações europeia e americana com as instituições está altíssimo?

FS: Diria que há uma alta dose de confiança no Brasil em relação a muitas instituições. A justiça eleitoral é uma delas. O Brasil tem um dos melhores sistemas de votação eletrônica do planeta. Nosso sistema financeiro, de um modo geral, tem alto índice de confiança. Nossa imprensa goza, de modo geral, de grande prestígio. Muitas áreas do Estado são altamente respeitáveis: o Ministério Público, a Polícia Federal, e recentemente tivemos uma afirmação espetacular do Supremo Tribunal Federal. De todo modo, quando falo de confiança, não trato sobre como as pessoas, individualmente, consideram as instituições públicas. Falo do estado de confiança, da disposição das pessoas para tomar risco, empreender, inovar. Há um elemento schumpeteriano aí. A questão seria, por exemplo: você topa abrir uma empresa, contrair crédito e contratar pessoas pela CLT? Acho que a grande função das instituições é dar estabilidade e conferir previsibilidade para que os agentes privados façam suas escolhas. E determinados modelos institucionais incentivam este ou aquele comportamento. No Brasil, por exemplo, há um grande incentivo para que as pessoa virem funcionárias públicas, porque há estabilidade rígida de emprego, porque o Estado paga, em geral, mais do que o mercado, porque há um generoso sistema de previdência pública. Há um sistema de incentivos aí, cujo resultado são centenas de milhares de jovens brasileiros, que poderiam estar pensando em criar um novo negócio, envolvidos na chamada indústria dos concursos públicos.

A: Mas isso não explica o descrédito das instituições políticas, especialmente os partidos e a própria noção de democracia representativa.

FS: Sobre a democracia representativa, eu gosto muito de uma observação de Norberto Bobbio, segundo a qual há um elemento saudável na abstenção eleitoral, típica em qualquer democracia avançada. Sendo o voto facultativo, como deveria ser, metade (um pouco mais, um pouco menos) da população, dependendo da época, vota ou deixa de votar. O que pode ser um gesto de confiança, como quem diz “a minha vida está bem, não vejo grandes diferenças entre os postulantes, os partidos, as ideias, etc.”. Em qualquer democracia avançada, as ideologias se aproximam, há uma certa confiança no processo de seleção que é próprio do sistema político. Além disso, não se inventou nada melhor do que a democracia representativa até hoje como forma de ordenar a cooperação política. Alguns falam em democracia direta, em “democracia participativa”, mas há de fato alguma experiência sistemática, em funcionamento, nesta direção, em alguma parte do mundo? Isto não quer dizer que não há espaço para exercícios de participação direta dos cidadãos. O risco é que a democracia se torne refém das minorias organizadas e barulhentas. A boa democracia precisa encontrar a medida do bom senso. Um certo conservadorismo encontra aí sua melhor definição: o lento aprendizado, o respeito ao cidadão médio, a proteção em relação aos grupos de interesse, a prevenção contra o populismo e a fraude da ideologia.

A: Há uma grande aposta no potencial transformador da educação. Assim como durante décadas os economistas estudaram a inflação, hoje há um enorme esforço concentrado em temas de economia e educação, economia e desenvolvimento. Quais são os nossos desafios centrais na área?

FS: A grande maioria — um número superior a 80% — dos alunos do ensino básico hoje são frequentadores das escolas públicas, que eu chamo de escolas estatais. Então o país precisa fazer duas coisas. Primeiro: tornar a rede pública mais eficiente, o que tem sido feito em alguns estados. É preciso implementar regimes de metas, profissionalizar a gestão. Essencialmente, é preciso introduzir os conceitos de mérito e de accountability no interior das escolas. Isto é muito difícil. As corporações de professores, protegidos pela estabilidade no emprego, e pela fragilidade dos governos, não querem ouvir falar nisso. A segunda coisa a fazer é evitar o crescimento da rede de ensino diretamente gerenciada pelo governo. Nossa elite é cínica quanto a isso. Defende o ensino estatal, de baixa qualidade, para os pobres, enquanto as classes média e alta há muito tempo já migraram para o ensino privado. Isso é uma aposta no aprofundamento de nosso apartheid social. É evidente que é preciso tornar o setor estatal mais eficiente, mas devemos fazer uma transição para outros modelos, capazes de promover uma real igualdade. Não é possível que uma criança, por vir de família com maior renda, tenha acesso a uma educação altamente qualificada, e que uma criança de uma família pobre seja condenada ao ensino estatal. O cinismo de nossa elite consiste em dizer o seguinte: o estado cuida dos pobres, ok? Se o estado não funcionar, a gente tenta melhorar. Mas se isso não acontecer, e lá se vão dez, vinte, trinta anos, não tem problema. Afinal, “a gente tentou, não?”. Trata-se de uma paciência infinita com a má educação oferecida aos mais pobres, e paciência nenhuma com a educação que recebem suas próprias crianças, logicamente em boas escolas privadas. Trata-se de um entendimento perfeito entre o ideologismo irresponsável da esquerda e o conservadorismo também irresponsável da elite. É esse acordo tácito que sustenta o apartheid educacional brasileiro.

A: Mas apostar no ensino estatal não é a melhor alternativa para os menos providos?

FS: Não. É só observar qualquer avaliação (Pisa, Enem, Prova Brasil, etc) para ver que não é. O Estado é capaz de fazer muitas coisas bem. Sabe fazer uma eleição sem fraude com mais de cem milhões de eleitores, pagar em dia o Bolsa Família, recolher as declarações de IR pela internet, sem falhas, mas não consegue administrar uma escola, um hospital, um presídio, um asilo ou museu. Quem duvidar, faça uma visita aos museus estatais do Rio de Janeiro. Ou aos presídios estatais, em qualquer estado. Na tradição clássica do welfare state, o Estado tem funções redistributivas, tem funções previdenciárias e tem funções de prestação de serviços. É esse terceiro elemento que falhou, no Brasil, em função das regras de funcionamento que criamos para nosso setor público. Quem duvidar disso, tente gerenciar uma escola com a Lei 8.666, o regime de estabilidade dos servidores e nenhuma autonomia administrativa e orçamentária. O ponto é que a incapacidade gerencial do Estado levou a classe média, com todo direito, a contratar o setor privado, a saúde privada, escolas privadas, a segurança privada. Por que não viabilizar essa alternativa aos mais pobres? Um bom programa nesse sentido foi o Prouni, que permitiu pela primeira vez o trânsito entre o financiamento dos indivíduos mais pobres e a oferta de educação privada. O que é o Prouni senão um programa de vouchers na área da educação? Esse tipo de programa foi estigmatizado durante anos no Brasil pela esquerda, por intelectuais e pedagogos, até que foi implementado pelo governo do PT, pelo então ministro Tarso Genro. E o programa é um sucesso. Ele tem um custo burocrático zero, não produz máquina pública, e cria um profundo senso de igualdade entre pessoas de faixa de renda muito desiguais. É um sistema perfeito de voucher de educação. Por que nenhum intelectual brasileiro reclamou? Por que todos aqueles educadores e pedagogos que vociferaram contra o sistema de voucher não vociferaram contra o Prouni? Terá sido porque foi o PT que implementou? Então o que eu sugiro é a extensão do sistema do Prouni para o ensino fundamental. Será nossa via de ruptura com o apartheid socioeducacional.

A: Qual é, na sua avaliação, o papel que a cultura pode desempenhar nessas mudanças, nesse renascer do Brasil? Dado o histórico que você tem com o Fronteiras do Pensamento, que já trouxe vários prêmios Nobel, escritores, filósofos, cientistas, levando isso para uma plateia variada, inclusive com projetos voltados às crianças nas escolas públicas, tanto do Rio Grande do Sul quanto agora aqui em São Paulo, qual é o efeito de trazer um Vargas Llosa, um Salman Rushdie, um Michael Sandel para debater aqui?

FS: A frase não é original, mas sempre significou muito para mim: “ideias tem consequência”. Eu estava escrevendo um artigo recentemente sobre a trajetória do jovem Fidel Castro. Fidel Castro fez a revolução cubana em grande medida a partir de suas leituras na Universidade de Havana, nos anos 1940. Ele tinha dezoito, vinte anos e lia compêndios marxistas-leninistas (por vezes andava com o Mein Kampf, de Hitler, embaixo do braço). Ele poderia ter lido Isaiah Berlin em sua juventude, ou John Stuart Mill, ou James Madison, ou os ensaios do Montaigne. Ele poderia ter aprendido sobre a moderação, poderia ter lido o Cândido de Voltaire e aprendido sobre os perigos da obsessão política e pelo poder. Ele poderia ter criado uma grande fundação em Cuba para ajudar a disseminar as ideias de liberdade, consolidar uma democracia pluralista. Poderia, em suma, ter adotado uma outra base de valores, e Cuba talvez não tivesse se transformado na mais longeva ditadura da América Latina. Mas Fidel fez as leituras erradas. Veja-se a transformação do jovem Vargas Llosa em um homem maduro e democrata, hoje um dos grandes defensores das liberdades na América Latina. Llosa é leitor de Camus e Octavio Paz. Ela mostra o poder das ideias, da leitura, da disseminação do debate, da força das palavras. Aí está o papel da cultura. O que mais me encanta no Fronteiras do Pensamento não é apenas realizar uma palestra com um grande nome; é antes o efeito irradiador que a imprensa produz, que as revistas, as entrevistas, a internet e, especialmente, o incentivo à leitura, produzem. Em particular, os efeitos que isso produz nas novas gerações, que ainda estão formando suas próprias ideias. Eu lamento que o Brasil não forme instituições culturais fortes como nos Estados Unidos e na Inglaterra, como é o caso da tradição dos think tanks, das fundações com endowment funds. Tive a chance de criar, no Rio Grande do Sul, a nossa primeira legislação de incentivo fiscal à formação de fundos de endowments: instituições que não dependem do governo e que irradiem cultura, apostando naquilo que muitas vezes é considerado inútil no ambiente latino-americano.