#17CulturaLiteratura

Pede pros anjos

por Vanessa Agricola

Carneirinho, de Efrain Almeida

Merda, chegou quem não devia. Esse loiro escroto tarado que fica me olhando com cara de tesão. Você acredita que às vezes ele some pro banheiro e meio que demora, daí ele volta e cheira a mão olhando pra minha cara. Juro por Deus. Tudo começou porque ele senta de costas pra rua, e eu virada pra ele, e às vezes nossos olhares se cruzam, sabe? Daí ele entendeu que eu quero dar pra ele, veja bem. Eu grávida. Eu sem um rímel de maquiagem. Eu às nove horas da manhã enchendo a cara de café e tiramisù. Olha lá, a negra bonita que senta na mesa do lado da dele pediu a conta. O cara é um gangorra, já ouviu essa expressão? Ele senta todo mundo levanta. Minha vó Alzira diria que ele não tem uma boa aura. Que gente com aura pesada afasta as pessoas. Não deve ser mentira. Embora minha vó Alzira acreditasse em cada coisa… inclusive anjo da guarda. Qualquer coisa que você fosse contar, tipo, vó, estou pensando em mudar de carreira, ela dizia: pede pros anjos, menina. Mas vó, se eles são anjos eles já não sabem o que a gente precisa? Daí ela tinha outra teoria, que cada um de nós é um deus ou deusa, e que os anjos estão aí para nos obedecer, não o contrário. Eles não podem fazer nada sem o seu consentimento. Se você não pedir, eles não podem te dar… como era fofa… Mas eu só me apego nessas coisas da vó Alzira quando estou na merda. Ajoelho, rezo, peço pelo amor de Deus. Dependendo da merda eu vou até na Juliana, que me limpa os chacras. Quando é uma merda muito grande eu apelo pro xamã. Ele invoca meu animal de poder, os mestres ascencionados, pede para abrirem o portal leste, o portal sul, e ao toque do tambor xamânico me libera os resíduos da memória limitante do meu sistema energético. Sério.

Terreiro de umbanda eu nunca fui, tenho medo. Uma vez fui numa cigana e ela mandou eu pegar uma galinha preta, deus me livre, nunca mais voltei. Morro de medo de macumba. Mas essas macumbas que você compra no mercado, sabe? Banho de sal grosso do pescoço pra baixo, depois chá de rosa branca na banheira, isso tudo eu acho que funciona. A Juliana me ensinou que quando a coisa fica preta, é bom limpar a casa com amônia, mas tem que ser você mesma, e depois queimar uma arruda, e depois acender uns incensos de canela, pela casa toda. Tem que ser um incenso no mínimo em cada canto da casa.

O xamã falou pra ter altar. Você tem altar? Pra mim ele falou que era bom ter um altar de santas e deusas, que no meu caso eu tinha que me cercar do poder sagrado do feminino. Quem sou eu pra contrariar um bruxo. Fui lá e pumba, altar na cabeça. Nunca faço nada. Mas quando o bicho pega, acendo vela, faço a porra toda.

Outra coisa que eu confio muito é tarô. Adoro. Minha vó Alzira achava um troço do pecado. Já astrologia tenho uma relação ambígua, mas quem nunca tomou um pé na bunda e foi parar numa astróloga? Uma vez eu estava muito na merda e fui numa astróloga carioca que me deu uma lição de vida (os cariocas têm muita sabedoria). Ela disse: Calma, garota. Você está nesse emprego que você não gosta, ganhando pouco mas tendo que ajudar a família, com esse namorado chato que não trepa nem sai da moita, mas calma. A vida não vai ser isso o tempo todo.

Essa frase, a vida não vai ser isso o tempo… eu sempre lembro dela. Porque é isso mesmo, a vida muda. É óbvio. Na hora parece que não, que você vai ficar naquele limbo pra sempre, mas a gente sempre se cura, como diria o Legião Urbana. O pra sempre sempre acaba.

Agora, se foi com a mãozinha da Juliana, ou do xamã, do altar, do banho de rosas, da vó Alzira (que Deus a tenha), eu sei lá… Uma vez perguntaram pra Glória Maria qual dos cento e doze cremes e pílulas que ela toma funciona e como ela poderia saber se são tantos. Sabe o que ela respondeu? Aí é que está, eu não faço a menor ideia, por isso eu continuo tomando todos.

A única coisa que deixei de acreditar foi no inferno. Na religião. Qualquer uma. E essa frase o inferno é aqui não me surte nenhum efeito. Coisa de gente infeliz. Imagina que uma pessoa nascida e criada no Brasil pode falar uma bobagem dessa. Ainda se fosse um iraquiano, um sírio…

Vocês viram o cara arrancando a cabeça do James Foley? Menina, me fala o que foi aquilo. E vocês viram que o cara era londrino? Tudo bem, o pai dele era egípcio e morreu num atentado mas… que merda! Que triste, que porra, que puta que pariu! Quando isso vai acabar? E será que eu e você podemos fazer alguma coisa? Será que eu rezo, vovó Alzira? Ei, anjos, parem com essa porra! Essa porra de ISIS! Vou rezar pra você, meu bom Alá, não permita que eles acreditem que é isso o que você quer, seja lá o que você queira!

Isso, minha filha, reza. Nós estamos te ouvindo.

Nós quem?? Quem está falando???

Eles nunca respondem.

Mas não acha que eles existem?