Janela indiscreta da alma
“Só receio uma única coisa neste mundo –
os momentos em que a vida se congela dentro de mim.”
Marina Tsvetáieva
Na virada para o século XX, observou-se no mundo ocidental uma guinada de produções intelectuais que priorizavam o uso da imaginação na busca pelo conhecimento. Ao negar tanto o realismo quanto o romantismo, autores como Freud e Proust reconheceram, cada um em seu métier, a importância da fantasia na reflexão sobre a realidade. É recorrente nesses autores a evocação de imagens – principalmente de sonhos e memórias – para investigar as profundezas da mente humana. Ao apreender as imagens, o olhar legitima a descoberta, mas também abre espaço ao desejo, que pode se ver frustrado.
O advento do cinema na última década do século XIX decorreu de descobertas tecnológicas, mas seu desenvolvimento só pôde se dar nesse terreno fértil. Afinal, o que é a narrativa cinematográfica senão a tentativa – mediante cortes e movimentos de câmera, que permitem sugestão – de adicionar um toque de imaginação à representação da realidade, a fim de superá-la? Gostaria de me debruçar sobre o lugar reservado à fantasia na obra de Alfred Hitchcock.
Em uma entrevista a François Truffaut, Hitchcock explica a diferença entre suspense e surpresa: caso haja uma bomba próxima ao protagonista, o diretor pode assustar o espectador desavisado com uma explosão ou mostrar-lhe a bomba e permitir que sua própria imaginação crie o suspense. Ao dar lugar à fantasia do espectador, a angústia e a tensão provocadas podem ser intermináveis, e Hitchcock percebeu que nossos desejos podem se realizar, em alguma instância, por meio do voyeurismo.
Psicose (1960) é seguramente o caso mais emblemático. Nesse filme carregado de elementos psicanalíticos, penetramos pouco a pouco – e a cada passo cientes dos desejos de “má conduta” que liberamos ao assistir um filme sobre comportamentos inadequados – o mistério em torno de Norman Bates e sua mãe. Hitchcock explora a fantasia do espectador em cada plano do longa-metragem, em especial na célebre cena do chuveiro.
Em Festim Diabólico (1948), dois amigos assassinam um colega e colocam o corpo no baú da sala onde oferecem um jantar. Entre os convidados estão os pais e a noiva do morto, e ele mesmo é esperado. Ao nos revelar desde o início do filme seu paradeiro e o plano dos assassinos, Hitchcock permite que nos sintamos parte do plano e que suspendamos, sem perceber (ou quase) nossas convicções morais. Saboreamos como nossa, com prazer e apreensão, a tensão do criminoso que desejava praticar o crime perfeito.
Esse abandono de convicções também está em Janela Indiscreta (1954), um filme que aborda esse prazer advindo do olhar e da imaginação. Assim como o protagonista, Jeff, está preso a uma cadeira de rodas, estamos presos ao seu olhar conforme ele observa os vizinhos pela janela dos fundos. Espiar a vida alheia certamente não é uma conduta admissível, mas, como espectadores, percebemos ser aquilo que buscamos ao assistir um filme. Quando Jeff identifica comportamentos estranhos em um dos apartamentos que observa, acompanhamos o percurso de sua imaginação, desde a angústia pela ausência de provas contra o suposto assassino à apreensão por Jeff e sua noiva.
O primeiro filme no qual Hitchcock explorou esses elementos foi Rebecca (1940). Ali, a obsessão da governanta pela memória da falecida torna a mansão macabra tanto para a protagonista quanto para o espectador, ambos os quais desconhecem a verdadeira Rebecca. Seu fantasma se esconde em cada cômodo da casa, e, assim como em Janela Indiscreta, tememos o que construímos em nossa mente – que pode ser ainda mais terrível que a realidade.
A experiência subjetiva do espectador tem papel importante nos filmes de Hitchcock, e os medos e desejos despertados, uma vez depositados na narrativa, a intensificam. Ele conduz o espectador a evocar – e desafiar – o obscuro da narrativa e de sua própria mente. Essas e outras razões tornam sua obra perene e fazem dele um mestre do suspense – e do cinema.
Ao analisar a produção cinematográfica atual, contudo, percebemos que realidade e fantasia vêm desvinculadas. Há uma preferência ou pelo realismo exacerbado ou pela criação de um universo fantástico que foge completamente de nossa realidade. O cinema está perdendo suas nuances, e a falta de espaço destinado à imaginação impossibilita que realizemos desejos a partir do prazer que sentimos ao olhar.