Cada pequeno gesto repete milhões de outros gestos, cada pensamento prova. Prova de admissão em si mesmo. Ele queria chegar à pausa. Imagina o tempo como uma cadência. A sorte. O pulso. A morte.
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Esquecer os outros, esquecer o mundo, esquecer-se, enfim. Esquecer é um exercício do presente. Não é tão difícil quando o sol esquenta: seu corpo em brasa. E o vento arrefece.
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Houve um naufrágio dentro de casa. Ele tem 30 anos. Ele se lembra. Mas hoje ele quer pensar em outra coisa. Ou melhor: de outra forma. Ele quer pensar seu pensamento, ele quer pensar o que pensa e não para nunca. Estar fora da ladainha irritante que o assola. Ele quer algo estranho: olhar seus próprios olhos. Saber como seu corpo se mexe. Alheio à própria carne. Ver desprovido de olhos.
Presença
O mar é sedento, às vezes me mete medo. Olho para ele: rajada de luz.
Brincadeira de sol e mar: idas e vindas, pausa, fluxo.
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Teve o dia – o momento em que desliguei o telefone. Teu pai morreu. Desci do carro e saí. Arrastando-me por entre os rochedos, entrando em grutas para chorar, praia atrás de praia. O céu, o mar e a terra me eram completamente estranhos. Todo o planeta transformava-se em vertigem: imagem. Olhava o céu subitamente descontrolado; as nuvens e o mar em conluio acelerado e hostil.
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Eu presenciava a transubstanciação da vida. Era necessário deitar na grama para ver o luar pulsando no mato orvalhado: sentir a plenitude, a benção do meu pai.
Tive certeza de que a cidade concreta não só as nascentes de água, mas o tempo como um todo. Foi necessário deixá-la e mudar para o campo. Entender o funcionamento das plantas.
Paisagem
É no mistério que brota o desejo. Ele tem cabelos: cipós
A chuva veio confirmar a vida. Os brotos rebentam. No dia seguinte, todo o visível: mato.
Um boi ancestral rumina a paisagem. Ele está calmo, também ele entende a planície. Tudo respira a calma. A chuva vai e volta.
Eternos ciclos de chuva refletidos no espelho atrás da cama. Estivemos viajando, quiçá ainda estamos. Vivemos contidos em malas. Soltos. A água esconde-se nos grotões.
Um rio corta a paisagem: navalha de luz.
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Transluz
Os vermelhos viscosos as chagas fumegantes as cidades mornas e ásperas, sou eu o inferno e me vejo cada vez mais dobrado.
As rochas pedem eixo, postura. Fluxo do cocuruto do crânio à unha do pé. Puxa a pedra enorme indo ao centro da Terra. O céu e a água passam. Jorra, atravessa o corpo, atravessa o corpo, atravessa o corpo, jorra, atravessa o corpo, jorra.
Grita e pede expurga! Abre o véu que esconde o peito e transluz.
Jardim de shopping
Andaríamos pela cidade
Atentos a tudo o que nasce
Cada casca um cristal
Cada folha um átomo
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Esconde o que é construído (arquitetura ruindo lentamente)
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No shopping, pequenos arbustos, suculentas rodeadas de pedrinhas ocas estranhamente ordenadas: parecem mortas!
Seria o jardim de shopping um álibi à insensatez?
Linhas de plantas iguais
Apenas variedades selecionadas – ó risco de selvageria! Ó plantas daninhas! Como se o mato escancarasse a injustiça social, fosse a desordem um risco à certeza das mercadorias enfileiradas, a própria espontaneidade e o vigor inerente às plantas espontâneas pudessem desencadear as cadeias transnacionais da economia globalizada.
Jardim de shopping: paradoxalmente ponto de máxima vulnerabilidade, expressão demasiado honesta do medo dos outros, de si, da vida, de tudo o que é (sem corante, silicone e trabalho escravo).
Jardim de shopping: vergonha escancarada da arquitetura social, desespero da ordem, ponto final sobre a história da autoridade. Autoridade sem subjugado, delírio lógico do “sim, claro, que chique” à matar as mesmas plantas que de nascença brotam no lugar que é seu.
Como os filhos dos filhos dos negros escravos insistem em fazer filhos, as plantas brotam da raiz de outra planta arrancada.
Amigos, irmãos, amores, andem pela cidade, toquem no tronco das árvores! Vejam os jardins construídos, planejados… vivos!