Identificamos. Depois, classificamos pessoas, coisas, situações e circunstâncias. Para facilitar, a cada treco, encontramos seu oposto. O objeto fica, assim, definido tanto pelo que é quanto por tudo o que não é – a “outra coisa”.
Pensamos em módulo Dois.
Não sei em qual momento da evolução decidimos organizar as ideias, valores e opiniões desse jeito. Não sei se biologicamente somos construídos para agir assim – seria nosso cérebro programado dessa forma? Não sei se algum ancestral nosso recebeu uma ordem expressa: “é assim que se pensa”, e passamos a repeti-la como um exército enfileirado gerações adentro. Tampouco desconfio se este é um estratagema de algum mal-intencionado e entendido em comunicação que, com esse ardil, manipula-nos para estreitar nossa visão.
O fato é que algum instinto nos leva a pensar em baias. Há a nossa e a “de fora”. Outro ou outros, isso não importa. Todo o mais é diferente.
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Minha família “não se mete em confusão”. Estudei em colégio tradicional católico. Como diversão, escolhi jogar bola e ouvir rock. Entrei em faculdade de Comunicação e, de lá, para o mercado. As preferências políticas eram sólidas. A visão de mundo, idem. E alguma facilidade para falar e escrever rebocaram minhas opiniões, dando a elas o acabamento que me servia. As grandes certezas me faziam dormir tranquilo enquanto o outro lado armava algo para dominar o mundo.
Mas aí o mundo resolveu mudar. Tecnologia, informação, conhecimento, comportamento… Tudo entrou em transe, nome mais apropriado que “transição” (já que a segunda supõe que conheçamos o destino das mudanças, o que não é exatamente verdade). Todas as jaulas se abriram, e os animais deram as mãos a tratadores, vendedores de pipoca, visitantes e quem mais encontraram no caminho, criando novas raças, arranjos, funções e métodos. Darwin ficaria encantado. E também intrigado, pois tudo e todos convivem: o azul, o vermelho e quem só acredita nessas cores; as outras cores; as cores novas; pessoas binárias para determinados assuntos e, ao mesmo tempo, multinárias para outros.
Eu me vi, ironicamente, em uma dicotomia: continuo naquele mundo do “é assim mesmo”, Fla-Flu, par ou ímpar, ou mergulho no abismo vazio entre os Dois extremos para ver se, lá, alguma forma de vida desconhecida me devora? O Dois ficou apertado para mim. Visto a sunga e dou um jump. Para minha surpresa, sobrevivo no oceano incerto. O mundo é, mesmo, líquido.
Abri um pouco mais meus sentidos, em busca de algum sentido. Vi que estreita mesmo era a minha experiência de vida. Sempre houve pessoas, comunidades, culturas mais alinhadas a outros pensares. O binário podia até ser hegemônico, mas (eureka!) nunca único. Entre leituras e ouvidos atentos (apenas para ficar em um exemplo), tomei contato com o taoísmo, tradição milenar chinesa. Em seu livro sagrado Tao Te Ching, Lao Tsé ensina: “O Tao [o caminho] gera o um. O um gera o dois. O dois gera o três, que gera dez mil coisas”.
Cheguei a considerar coisas como “a esquerda e a direita, de fato, acabaram”. Mas elas continuavam e continuam presentes, junto a outras interpretações. Mais que isso, está nascendo uma nova democracia e uma nova política, que inclui em um mesmo ambiente as formas antigas – até mesmo as mais nefastas.
Lindo, mas nada simples.
Enquanto o conhecimento, a crítica e a conexão começaram a criar outras formas de vida, está cada vez mais aceita a ideia de complexidade. Que, em um conflito, não restam apenas vencedores e vencidos. Há cada vez menos segredos e menos silêncios. Considerações são e serão feitas sob todas as óticas. E qualquer decisão que ignore os vários lados da moeda nasce com a certeza de que será revista.
Talvez seja por isso que há uma clara reação do mundo arcaico. Reacionários não conseguem compreender um planeta que foge cada vez mais rápido, e para lugares a cada minuto mais distantes, de sua ótica. É muito descontrole para uma visãozinha de mundo só. Taca-lhe pau em ideias como o casamento homoafetivo, aborto, combate ao racismo etc.
Eu, que tenho uma dificuldade danada com esse novo mundo, resolvi exercitar. Talvez para tornar o transe mais doce, junto com minha sócia, Marcia, criamos o Oppina, uma plataforma de informação que reúne opiniões diversas – complementares, divergentes, opostas – a respeito de temas urgentes e polêmicos. Assuntos relevantes serão tratados por especialistas e líderes em suas áreas, valorizando pontos de vistas diferentes e o ambiente de respeito às diferenças. Nosso projeto propõe o exercício da escuta, do respeito e da tolerância.
E por que estamos fazendo o Oppina acontecer?
Porque a necessidade de costurar acordos para viabilizar a vida passa pela aceitação da complexidade. Porque, para não estagnarmos, precisaremos hackear o espaço entre os polos opostos, fazendo emergir ideias existentes e, também, criar novas. E, neste ambiente, contribuir para o entendimento de que em opiniões diferentes há, também, conhecimento a ser contatado, conhecido e respeitado. Concordar ou não com o que se diz é apenas circunstancial. Basta que estejamos disponíveis a escutar ao invés de, agarrados às nossas crenças, reagirmos a pontapés.
Na prática, daremos ao público interessado a oportunidade de escutar vários pontos de vista acerca do mesmo tema. Simplesmente porque há mais respostas que o “sim” e o “não”. A riqueza está, também, no “talvez”, na dúvida, no ponto de vista surpreendente. Nosso mundo não anda dando chance a quem tapa os ouvidos seletivamente.
Viver a dois é ótimo. Pensar em Dois, não dá.