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Pindorama, índios e o brasileiro

por Shogyo Gustavo Pinto

Névoas densas envolvem o que às vezes supomos claro. Dois equívocos e um enigma intitulam o presente artigo. O primeiro equívoco é imaginar que o termo tupi-guarani “Pindorama” seja o nome que precedeu o terceiro escolhido pelos portugueses para a terra cuja descoberta os lusitanos reivindicam apesar das evidências de que navegadores de outras nacionalidades estiveram aqui antes de Cabral.

O equívoco consiste na suposição de que todos os habitantes desnudos que os portugueses aqui encontraram em 1500 falavam tupi-guarani. Chestimir Loukotka, em Línguas indígenas do Brasil (Revista do Arquivo Municipal, v. 54, 1939, São Paulo), reconhece 237 línguas nas terras descobertas por Cabral, enquanto Aryon Dall’Igna Rodrigues, em Línguas brasileiras (Loyola, São Paulo, 1986), estima que fossem mais de trezentas, das quais 170 ainda estão vivas. Considerando as distâncias que separavam as tribos do Oiapoque ao Chui, as guerras frequentes e as animosidades ancestrais, é fácil concluir que, afora os falantes de tupi-guarani, centenas de outras etnias provavelmente ignoravam o termo Pindorama e chamavam a sua terra por nomes em suas próprias línguas.

O segundo equívoco é um desdobramento do primeiro e consiste em se referir aos índios supondo uma unidade étnica e/ou cultural. Estima-se em mais de duas centenas as etnias que aqui viviam em 1500. Quando se fala em cultura indígena, é preciso primeiro perguntar a qual delas se está referindo e, em seguida, é preciso indagar como se demonstra a unidade que o singular na expressão supõe, pois evidente é a diversidade que havia então e ainda hoje remanesce.

Sobre os dois equívocos impera uma suposição igualmente equivocada quando se atribui aos índios em 1500 a posse do território que hoje chamamos de Brasil. Em suas cartas, Américo Vespúcio menciona a inexistência do sentimento de posse da terra entre os aborígenes. Além disso, as tribos deslocavam-se em virtude do esgotamento do solo, devido à coivara, e também em decorrência das guerras.

Outro equívoco espantoso é a fantasia edênica que vicejou no imaginário Europeu desde os relatos dos primeiros viajantes e que persiste ainda hoje, apesar dos fatos evidenciarem a falácia da projeção. Antes da chegada de Cabral, em torno de um milhão de ferozes Tupinambá espalharam terror desde a foz do Amazonas até a Lagoa dos Patos, matando e expulsando para o interior os índios das tribos que antes viviam na costa. Consolidada a sua supremacia, deram início a guerras entre eles próprios. “A prática da antropofagia ou canibalismo entre os Tupinambá estava associada diretamente com a intensificação da guerra intestina e fratricida”. (Os índios e o Brasil, Mércio Pereira Gomes, ed. Contexto, São Paulo, 2012).

Quando Américo Vespúcio indagou a razão de estarem constantemente em guerra, descobriu que os índios não sabiam explicar e respondiam dizendo “os índios das outras tribos devem ter feito alguma coisa ruim para os nossos pais”. Cabral não imaginava a sorte que teve ao aportar em Porto Seguro, onde viviam Tupiniquins pacíficos e amistosos. Iludido pelo relato de Caminha, Vespúcio, em 1501, deixou alguns tripulantes em Cabo Frio enquanto navegava mapeando a região sul. Ao voltar encontrou somente as ossadas churrasqueadas. Portugueses, franceses e holandeses sempre se valeram dos ódios intertribais para estabelecer alianças que assegurassem apoio para se fixarem aqui.

Quem pacificou o convívio entre as diferentes tribos (um esforço de séculos) foram os portugueses, com decisiva contribuição dos padres. No século XVIII, os Mundurucus, caçadores de cabeças que, após a degola, as miniaturizavam retirando o crânio e fervendo a pele, aterrorizavam as tribos do baixo Amazonas, e muitos índios fugiam para Belém buscando proteção. Ali, portugueses salvaram índios ameaçados por índios. O termo então usado pelos Mundurucus para designar outros índios era a mesma palavra que designava “caça”. Só a persistente catequese dos padres durante gerações conseguiu convencer os Mundurucus a abandonar o hábito de caçar cabeças. O convívio entre as diferentes tribos nessas plagas abaixo do Equador não diferia muito das guerras e morticínios que incendiavam a Europa, a África e a Ásia. O idílico paraíso tropical povoado por “bons selvagens” só existia na cabeça de alguns intelectuais europeus cuja quimera idealizada persiste crível para alguns intelectuais contemporâneos que rápido “esqueceram” a capa da revista Veja que estampou a ferocidade na face de um estuprador. Para salvar a idealização, o “politicamente correto” apagou da memória nacional a barbárie do crime cobrindo-o com um manto pétreo de silêncio. O estuprador era índio e a vítima, uma professora brasileira.

De seres humanos são constituídos todos os povos. Em lugar de idealizar ou demonizar (erros equivalentes), melhor lembrar um velho ensinamento budista: “Na natureza não há o melhor nem o pior. Os ramos primaveris crescem, uns longos outros curtos”. Em todas as culturas e comunidades humanas há pessoas admiráveis e criminosos perigosos. Entre os indígenas não é diferente.

Vamos agora ao enigma que acompanha os dois equívocos no título do presente artigo. Brasileiros. O que significa isso? Santo Agostinho dizia que, se não lhe perguntassem o que era o tempo, ele sabia. Quando perguntavam, ele já não sabia. Algo semelhante acontece com o brasileiro. Se não nos perguntam, julgamos saber o que é. Quando nos indagam como é o brasileiro, descobrimos que estamos diante de um território nebuloso. No presente artigo vamos nos ater ao enigma apenas no que diz respeito ao segundo equívoco, isto é, índios e o brasileiro.

Todo brasileiro traz em si um pouco de índio. Em caso de dúvida basta ler a narrativa a seguir. “Ao entrar numa biboca em Ipanema, ele ouviu ‘Oi’. Pensou, será uma arapuca? Quem o chamava fedia como gambá, mas ele riu ao ver que era o xará que andava capenga. Pediram abacaxi, caju e pipoca. Conversaram só lengalenga, mas não ficaram de nhenhenhém”. Todos os substantivos, adjetivos e a interjeição “oi” são termos tupi-guarani, do que talvez nem suspeitassem a estonteante garota que passava e o poeta embevecido que lhe cantarolou um samba que ainda hoje encanta onde o cantem mundo afora. Quem entendeu a breve narrativa, seja brasileiro filho de alemão, italiano, japonês, espanhol, português, polonês ou zulu, também tem um pouco de índio, pois “a linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem”. (Sobre o Humanismo, Martin Heidegger, Tempo Brasileiro, 1967). Palavras não apenas designam coisas, elas constituem o mundo atribuindo-lhe sentido.

Observemos a toponímia brasileira e veremos que os índios batizaram nossos rios, vales e montanhas, nossas praias, frutas, peixes, árvores, pássaros. O poeta que no exílio cantou a saudade de sua terra escolheu o sabiá para cantar a sua dor. Há mais de índio no brasileiro do que ele o sabe. As jovens que nas nossas praias prodigalizam aos olhos embevecidos a majestade de sua anatomia são herdeiras esquecidas de quem as precedeu.

“Ali andavam entre eles, três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas abaixo; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as olharmos muito bem não tínhamos nenhuma vergonha”. (Carta de Pero Vaz de Caminha, O Brasil de Américo Vespúcio, Ricardo Fontana, UNB, 1994, pág. 202.)

O erotismo que marca a cultura brasileira não veio de além-mar; ao contrário, cativou quem de lá veio. Por que dois grumetes de madrugada fugiram da caravela cabralina para se esconder na mata e ficar no Brasil? O ferro em brasa da paixão até hoje converte neófitos gringos à suave e doce malemolência das redes onde a sobrevivência da raça mestiçada é assegurada entre risos e cochichos, seja dia ou seja noite. Os índios do lado de baixo do Equador desconheciam o “pecado”, essa criação das religiões abraâmicas. Desde os portugueses temerosos da Inquisição, quem não vem do Oriente sempre traz na bagagem da alma os seus pecados. Quando escolhem ficar, é porque aqui se descobrem liberados. Assim foi desde 1500, assim será enquanto ainda viver em nós o índio que também somos.

“São pouco ciumentos mas sumamente libidinosos, mais as mulheres que os homens: julgamos que devemos aqui calar, por pudor, os artifícios delas para satisfazer sua libido insaciável.” (Américo Vespúcio, in Novo mundo, Eduardo Bueno, Ed. Planeta, São Paulo, 2003, pag.74.)

Nós, brasileiros, ainda não sabemos quem somos. Quando o enigma for resolvido, no prato cozido em fogo baixo rescenderá um sabor que vem de ocas ancestrais nas quais ainda hoje crepita o lume em torno do qual famílias se reúnem. A fumaça atravessa a palha que recobre a morada e sobe ao céu, livre de chaminés. Isolados, arredios, ou mesmo nas reservas indígenas, ainda há muitos que não falam português, não sabem o que é Brasil, nem imaginam que ajudaram a formar os brasileiros.